Removidos da favela para o meio da mata, sem nada, construíram um bairro
Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais
Removidos da favela para o meio da mata, sem nada, construíram um bairro
Wayne Tiago era menino, ainda enxergava, no dia em que desembarcou na área, àquela época "sem nada mesmo", onde hoje é o Conjunto Palmeiras. Sua família desceu de um caminhão caçamba. A promessa era de uma casa, mas o recebido foi um lote e a lona
É dos registros mais importantes preservados como imagem em sua memória. "Lembro ainda hoje de tudo o que vi. Está tudo muito presente". Wayne Tiago da Silva Araújo é cego. Tinha 8 anos de idade, ainda enxergava. Começo da tarde do dia 11 de novembro de 1975: o pai, a mãe e os oito filhos, incluindo ele, todos sendo removidos de casa em cima de um caminhão caçamba, desses de carregar pedras e entulhos. Na mudança, viajaram amontoados dividindo espaço entre as tralhas, os cacarecos (expressão dele) e os pertences mais valiosos.
Tudo e todos sendo levados para uma terra prometida com direito a "uma casa nova", na versão da Prefeitura da época. Foram cerca de 15 km, mas por caminhos tão ruins na época que só chegaram ao destino no fim daquela tarde. Lá, o recebido foi um pedaço de chão dentro de uma mata fechada. Lugar ermo, isolado. De fato não foi uma casa, era um lote 10x20m e uma lona que por um tempo serviu de teto, até cobrirem com telha.
Não tinha paredes, as ruas eram mal desenhadas ou nem existiam. Ao pé da letra, repassaram-lhes o espaço e uma coberta. "Não tinha nada", recorda-se. O pior: seu pai, então sargento da PM, pagou por essa "morada". O lugar que Wayne e a família foram desembarcados, naqueles dias sem qualquer dignidade, é atualmente o Conjunto Palmeiras.
"O que tinha aqui era só pedra e muita árvore (carnaubeiras). Era uma mata muito grande. Tivemos que brocar o mato, arrancar tôco, capinar. Ganhamos só o chão. Nós que fizemos a casa. De taipa, parede de pau-a-pique. Enchíamos com barro massapê misturado com piçarra. Na mão. Por isso dizemos que o Conjunto Palmeiras foi um bairro construído de fato por nós, pelos moradores. Não tinha mesmo nada", conta. Alguns poucos já haviam se instalado em casebres improvisados.
"Aquele foi um momento muito sofrido. Lembro de gente morrendo mesmo de fome. Ainda tinha as mazelas, tuberculose, sarampo, catapora. As próprias pessoas faziam os caixões nos quintais. Lembro de uma menina de 12 anos morta em cima de uma banda de porta, de fome", revive. Silenciei, imaginando. "Tivemos que cavar para ter água. Na época das secas, precisava escavar mais porque os olhos d'água secavam. Passamos muita necessidade".
Também coletavam água na Lagoa Verde. O braço do rio Cocó, ali perto, era limpo, segundo Wayne. O cenário, apesar de difícil, virava a diversão da escadinha de filhos. A gaveta da infância nas suas lembranças é bem cheia: os banhos, pescarias, subir em árvores, colher frutas, correr, jogar bola, bila, jô-ajuda, "várias brincadeiras que nem existem mais".
As primeiras caçambadas de gente haviam começado a partir de 1974. Faz 50 anos. Wayne e sua família foram transferidos da comunidade Beco da Verdes Mares, que ficava entre a Aldeota e o Papicu. "Comentava-se na época que tinham que tirar os pobres de lá para fazer a casa dos ricos", reconta, do que ouvia dentro de casa. Aqueles eram tempos de ditadura militar, a lorota espalhada pela Prefeitura foi pouco rebatida. Contestar não era um direito.
As remoções em massa, promovidas pela gestão municipal e também desenvolvidas no plano federal, eram vendidas oficialmente como uma nova política habitacional. Seria o progresso, a cidade precisava expandir e coisa e tal. Mas o efeito mais evidente foi desfavelar trechos da Capital com potencial valor imobiliário. Regiões como Arraial Moura Brasil, Morro das Placas, Poço da Draga, Mucuripe, Pirambu, Lagamar, Titanzinho, passaram pelo mesmo. A própria imprensa e os gestores da urbe os chamavam de favelados, em tom pejorativo.
Naquele 1975 ainda houve um recorte de tragédia. Choveu torrencialmente em Fortaleza, muita gente de áreas de risco ficou desabrigada, desalojada. Muitas famílias precisaram ser acolhidas dentro do estádio Presidente Vargas. E, justificando a necessidade e dando chancela ao programa de remoções urbanas, dezenas delas acabaram transferidas para o Conjunto Palmeiras. A desfavelização havia acontecido como planejado.
Os pais de Wayne nunca mais saíram. O endereço do primeiro dia é o mesmo: rua do Pensamento, 125. Seu Sebastião tem Alzheimer, dona Ana Maria cuida dele, da casa e é guardiã das histórias. O casal chegou a ter seis filhos a mais antes de irem para o Palmeiras — quatro morreram ainda criança e ela sofreu um aborto espontâneo de gêmeos. Na nova morada, nasceram mais dois filhos, em 1976 e 1983.
Wayne mora a pouco mais de um quarteirão dos pais. O lugar todo cresceu, firmou-se. Tem até um banco popular, o Palmas, que criou moeda própria. O Conjunto Palmeiras é um dos bairros mais populosos de Fortaleza, hoje com mais de 40 mil moradores. A propósito, só foi criado oficialmente como bairro em 2007, através de lei municipal.
O menino sentava-se sempre na primeira fileira da sala de aula. A dificuldade de definir as letras e números na lousa foi se agravando. Dos 13 para 14 anos, foi diagnosticado com a Síndrome de Marfan, doença rara, hereditária, atinge o tecido conjuntivo e compromete vários órgãos, incluindo o sistema ocular. Aos 21, Wayne perdeu a visão de um dos olhos; aos 24, a do outro. Cegou, nem por isso parou. Já tem mais da metade da vida nessa condição, faz mais do que muitos fariam — por si e pela comunidade.
Wayne potencializa seus outros sentidos. Vê além. É locutor de uma web-rádio comunitária, chamada Voz Livre. Ouve e ecoa as demandas do bairro. Percebe cenários, opina, sugere, cobra. Ele lembra das primeiras conquistas por rede elétrica, calçamentos, posto de saúde. De quando a Valparaíso, principal avenida do bairro, nem tinha poste. Já foi o candidato a vereador mais votado dentro do bairro, embora não tenha sido eleito.
Sobre segurança, admite que "não é confortável falar, sempre é difícil. Aliás, falar não me incomoda, me entristece". Ele cita as drogas e facções, mas considera que "como toda periferia, se tornou muito violenta". Foram muitos dias difíceis, duros, continuam sendo... mas sua voz se eleva para exaltar: "Amo esse bairro. Fora as amarguras da seca, a fome, as dificuldades, só tive alegria. O bairro evoluiu. Tenho muita gratidão".
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