Faz 27 anos. Rejane de Souza Alencar tinha 18. Ela lembra de todos os detalhes. Levou dois tiros na cabeça e continuou consciente, vendo enquanto conseguiu e ouvindo tudo - apenas com o intervalo de um desmaio, que até hoje não sabe se durou por minutos ou segundos. Descreve os sons, o cheiro que sentiu, o gosto de sangue e de um projétil calibre 38 na boca, a perspicácia de se fingir de morta numa contagem mental de cinco minutos, mesmo com as dores indizíveis.
Todos os sentidos indicaram que seria sua morte. Segundo ela, menos sua vontade. Queria seguir viva, ainda se imaginava com propósitos a cumprir. O que planejou desde aquele momento, à exceção de voltar a enxergar, tem conseguido. Sobreviveu, foi mãe duas vezes, refez a vida. É massoterapeuta, qualificada em 15 técnicas. Rejane, nome que significa rainha, inclusive ganhou a amizade e a ajuda relevante de um rei em seu tratamento.
É preciso primeiro cruzar a parte mais trágica de sua história. O assalto foi no final da tarde do dia 10 de janeiro de 1997, uma sexta-feira, expediente já perto de encerrar. A sala era no quarto andar de um edifício comercial na rua Silva Jatahy, no bairro Meireles. Havia três meses que ela trabalhava como secretária no escritório-ateliê do premiado designer de joias Aldo Rosas.
Ele tinha 59 anos, era um cearense renomado internacionalmente pelo ofício, mas que depois de muitos anos morando no Rio de Janeiro decidira voltar para sua terra natal dois anos antes. Justamente para fugir da violência carioca da época. Entre os dois assaltantes, um era tratado como seu "afilhado", prestava serviços eventuais como gravador das pedras preciosas. Havia uma porta blindada, mas ele foi autorizado a entrar. Um cúmplice passou em seguida.
Sem espaço de piedade, os dois criminosos foram cruéis ao extremo. No local, revólveres em punho, exigiam as joias já confeccionadas e as pedras ainda avulsas. Cataram o que puderam, quiseram mais. As vítimas estavam rendidas. Aldo pedia que poupassem a moça, que levassem o que queriam. Foi amarrado com um fio de aço, as mãos para trás, torturado com chutes, socos, pancadas.
Uma coronhada dada pelo "afilhado" foi tão forte na cabeça do joalheiro que a arma disparou e o tiro acertou o braço do comparsa. A tensão foi ao ápice: decidiram não deixar testemunhas. Rejane assistia a tudo: "Antes de eu levar os tiros, eu orei o Pai Nosso com muita fé e pedi ao meu chefe que ele também orasse. Sabia que ali ia dar ruim alguma coisa". Aldo Rosas levou dois tiros na cabeça.
Rejane estava sentada num banco quando levou o primeiro tiro, de cima para baixo, na altura da sobrancelha esquerda. A arma bem próxima, a bala saiu abaixo da têmpora. Rasgou seu olho, a maçã do rosto, destruiu o maxilar. "Aí eu caí, apaguei. Tive algumas revelações espirituais nesse momento".
Passa a descrever sua EQM, experiência de quase morte. Diz ter visto sua vida correr "como se fossem fotos, bem rápido". E fala de um clarão e pessoas vestidas de branco vindo em sua direção. "Acho que eram anjos. Eu só dizia que não queria partir, que ainda queria viver e ser mãe", relembra.
Não sabe o tempo que desmaiou. "Quando voltei, passei a mão no meu rosto (toca com a mão na primeira parte atingida, uma cicatriz bem discreta), eu estava enxergando perfeitamente". Ela viu o maçarico sobre a mesa, ligado intencionalmente pelos criminosos, o fogo se espalhava. Aldo estava ao seu lado atingido na cabeça, morto.
"Minha intenção foi levantar rapidamente e fechar o maçarico. Quando peguei, estava muito quente. Soltei e ouvi que ainda tinha gente na sala vizinha. Minha atitude foi voltar a ficar do mesmo jeito para me fazer de morta. Quando eu ia me deitar com a minha cara para o chão, ele entrou já com o revólver, encostou e atirou no meu olho", conta Rejane.
O desfecho do segundo disparo foi mais surpreendente. O criminoso atirou desta vez no lado direito, também de cima para baixo. A bala cruzou o crânio e ficou cravada no céu da boca. Rejane lembra que passava a língua e sentia o projétil. "Levei o impacto do segundo tiro mas fiquei totalmente consciente, ouvindo tudo". Decidiu se fingir de morta. "Aí, na minha cabeça, vou contar cinco minutos, é o tempo que eles saem". Já temia morrer carbonizada quando conseguiu pedir ajuda.
Os dois assaltantes foram presos menos de 80 horas depois do crime. O valor levado em joias teria sido de R$ 10 milhões. Mesmo sequelada na visão, Rejane deu o depoimento no tribunal como a única testemunha ocular. Foram condenados a 30 e 29 anos de prisão. Não consegui confirmar se continuam presos.
O maxilar, o rosto, a arcada dentária e a vida de Rejane, foi tudo sendo reconstruído. Com platina, várias cirurgias e o sonho realizado da maternidade. Ela foi mãe duas vezes, de dois relacionamentos. As filhas hoje têm 22 e 14 anos. O segundo marido, ela o conheceu como colega num curso de massoterapia no Instituto dos Cegos. São amigos, fundaram a Associação Cearense de Apoio aos Massoterapeutas Deficientes Visuais (Acamdevi).
Ainda eram poucos dias depois do episódio trágico quando Rejane recebeu - ainda recebe - a ajuda majestosa do rei Roberto Carlos. No final daquele janeiro de 1997, dia 31, o cantor faria um show no Marina Park Hotel. Uma amiga conhecia gente da produção e, na véspera, decidiu tentar que o caso chegasse ao conhecimento dele. Chegou.
Já de alta, ainda com o curativo nos dois olhos, Rejane ganhou convite para a apresentação. Roberto a recebeu em seu camarim. "Ele se emocionou, chorou muito". Maria Rita, sua esposa na época, ficou amiga de Rejane. Passaram a se falar diariamente por telefone. Em dezembro de 1999, ela morreu vítima de um câncer.
O rei custeou várias cirurgias de Rejane, físicas e espirituais, fora do Ceará. As próteses oculares que ela já teve, inclusive o par atual, ele que a presenteou. "Tenho um carinho muito grande. Ele é maravilhoso. Disse que me ajudaria sempre no que eu precisasse". Os shows que realiza em Fortaleza, ela é sempre convidada para as primeiras fileiras.
Rejane é agradecida. Ao rei, aos amigos, à sua fé cristã. A conversa foi toda entre sorrisos. Não nega a dificuldade de usar a bengala para se locomover sozinha ou o receio de ficar sozinha com quem não conheça. A visão não pode ser retomada nem por transplante. "Os nervos óticos foram estraçalhados", justifica. O trauma vivido não passou totalmente. Mas ela não nega felicidade e resiliência.
"Eu amo minha profissão. Eu ajudo as pessoas, tiro dores. Isso me faz muito feliz, sou uma pessoa muito realizada. Queria que a entrevista fosse direcionada para isso. Para as pessoas verem e saber que quem tem depressão, tristeza, que nós podemos quando a gente tem fé. Deus abre portas e coloca pessoas, anjos, para entrar na vida da gente e somar e fazer coisas boas".