Entre a paz e o apocalipse, Louro apresenta suas cores delirantes
Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais
Entre a paz e o apocalipse, Louro apresenta suas cores delirantes
Em sua morada multicolorida, toda pintada e ornada com artesania e referências bíblicas, ele parece se resguardar de um mundo real, sem posses, cuidando de animais, ressignificando o que os outros jogam fora. É como reafirma suas convicções espirituais
Quem escreve sobre alguém sempre torce que a escolha das palavras alcance a real dimensão do personagem. Foram várias tentativas — muitas! —, até definir um eixo textual que representasse mais fielmente a história de Jaime Garcia Bezerra. Para além da galeria de fotos, difícil dar conta da expressividade de "Louro", que é como o conhecem. É improvável ficar indiferente à sua figura, ao seu lugar, conhecer como e onde ele vive e interpretar o relato de suas experiências — as do plano terreno e as espirituais.
Com todos os limites respeitosos da comparação, tanto para o próprio Louro como para a relevância dos que serão mencionados, diria que ele tem um quê do poeta Gentileza (José Datrino) combinado com o artista plástico Arthur Bispo do Rosário, pela intuição e originalidade. Um difundia pregações pelas ruas do Rio de Janeiro e pintava poesias em pilastras de viadutos; o outro costurava obras de artes nas vestes, com linha, agulha, criatividade e esquizofrenia.
Também o vejo como um Antônio Conselheiro sem devotos, pelo estilo de vida genuíno, simples. Ou um fiel das lições de Francisco de Assis, abdicando de posses e luxo e priorizando o cuidado dos animais. Sua casa é sua Canudos, sua comunidade são seis cachorros, dez cabras, quatro pares de gansos, uma égua, uma potra, algumas galinhas. Todos têm nome: Badu, Shakira, Chuck, Lassie, Frida, Pandora, Crioula... Não tem TV nem celular. Hoje nem tem renda. Louro subsiste com a venda de capim que colhe de córregos e riachos próximos. Ou vende algum bicho criado quando precisa.
Aos 59 anos, garante que sua vida é uma transformação “para melhor”, pelo que passou. Já trabalhou embarcado em navio, morou alguns meses, no final dos anos 1990, em Santarém (PA) e em Caiena, capital da Guiana Francesa. O único filho, Manoel, mesmo nome de seu pai, hoje tem 30 anos, mora a cinco casas de distância, “ajuda quando pode”. Louro foi casado por poucos anos. Depois disso já viveu outra relação, que o “acorrentou” (termo dele) por sete anos. Está só. Afirma que prefere assim.
É sua casa, inserida nessa simplicidade, que mais demonstra o que foi dito até aqui. O lugar é uma hipérbole de cores. É única, no miolo do bairro que é um jardim (Iracema), da rua que é um rio (Araguaia). A paleta, intensa e variada, mistura roxo com verde e rosa e preto e amarelo e branco e prata e dourado e vermelho e azul e as que ainda virão. É sua harmonia. Está desde a fachada e se espraia pelo muro, portão, e por todos os ambientes internos, colunas, paredes, teto, piso, nos jarros, ornando com as plantas, na bicicleta, até numa charrete.
O colorido forma grafismos e cobre arestas, com vários objetos em sobreposição compondo figurações e mensagens. Praticamente todas têm referências bíblicas e do que Louro afirma ter experienciado espiritualmente. Parece um caleidoscópio em alto relevo. Na entrada principal, entre duas jovens palmeiras imperiais, enroladas por adereços, os dizeres Shalom e Apocalipse. Que, segundo ele, "significam a paz e a preparação para ter o Deus da paz, para você se examinar, porque isso aqui é passageiro". Seria o julgamento que cada um deve buscar e fazer de si mesmo. Quem não conhece pode até pensar que se trata de uma igreja, mas é seu templo particular.
Louro afirma que as primeiras pinturas e montagens "começaram na pandemia". Mas cita um tempo antes, o ano de 2000, quando teve "uma iluminação, um chamado". Adiante, falarei sobre isso.
As peças, que sozinhas seriam aleatórias, são de largados alheios. Ele ressimboliza. O flandre recortado forma espadas, martelos, lanças, cruzes ou relógios de areia ou com ponteiros. Um grande triângulo no alto do muro lembra uma pirâmide. O arco redondo seria um globo terrestre. O papel metálico desenha várias vezes o algarismo 7 ("sete é a perfeição") ou estrelas. O ferro se dobra como corações ou losangos. Há bobinas de fiação de telefonia, cabeceiras de cama, carretéis e recortes de matéria-prima de etiquetas de confecção, renas de decoração natalina, flores, telhas pintadas. CDs estão colados ao longo das paredes.
Há um ambiente recuado, mais próximo do jardim. É onde ele gosta de ler. Na parede está pintada a Oração da Manhã: "Senhor, no silêncio deste dia que amanhece, venho pedir-te a paz, a sabedoria, a força...", versa um trecho.
"Tudo aqui tem um significado, uma transformação, nada é aleatório", fundamenta. Louro que nem se considera um artista, mas fala de uma vez em que frequentou uma aula de um curso temporário, muitos anos atrás. "É uma criatividade. Eu posso dizer que não é minha e é minha porque é o prazer que eu tenho de viver. É ver as coisas que você pode fazer, que você deseja fazer e seja inspirado. Eu pelo menos não sou um homem que estudei, não estudei, mas vem aquela definição boa na minha mente, criar uma luz para a gente fazer".
Louro é lúcido, simpático, sereno. Tem paciência para escolher suas falas e tentar traduzir suas criações. É um desses sábios de escolaridade incompleta. Não concluiu a antiga 4ª série do 1º grau (hoje 3ª do ensino fundamental). Relegava o estudo para trabalhar. Mesmo com o pai rígido, escolheu cuidar de roças e bichos. Reaprendeu a gostar de ler há pouco tempo. "Li O Conde de Monte Cristo, e Primavera em Tchernóbil recentemente”. Tem uma Bíblia que achou numa rua do Montese.
Perguntei sobre sua religião: “Sou cristão”. Aqui cabe falar do episódio em que descreve “um chamado”. "Eu vinha pedindo a Deus uma transformação na minha vida". Louro associou a uma época de "problemas com bebedeira". Aí ele volta a 2000, não lembra o dia exato, quando diz ter visto um clarão, "o céu se abriu pra mim", quatro anjos com trombetas e fogueiras teriam surgido na sua frente. Diz ter sido tocado na cabeça. Faz menção a alguém de outro plano existencial.
"Isso eu tô falando pela primeira vez, não falei nem para ninguém". Nesse momento do relato, seus olhos azuis lacrimejaram. Naquela noite, lembra-se de ter rasgado a roupa do corpo e corrido de cueca pelas ruas. Entre o transe e o mundo real, levou o filho, ainda pequeno, para uma igreja próxima, para se ajoelharem. "Comecei a ter visões boas, maravilhosas. Passei dois anos quase sem falar com ninguém, recebendo coisas boas. Aí comecei a me transformar de forma diferente, eu não era mais a mesma pessoa".
Suas convicções o motivam, o protegem. Mesmo que alguns vejam como delírio, loucura, o tal parafuso a menos. A barba longa que usou por muito tempo — hoje apenas um bigode vistoso — também influenciava nesses julgamentos. “Não sofro com comentários. Pode me apedrejar, dizer que sou louco. Quando fazem isso, aí é que eu tenho mais a criatividade. Quando a pessoa me apedreja, parece que ela joga um conhecimento a mais em mim”, rebate Louro. Faz como na canção dos Mutantes: “Dizem que sou louco por pensar assim/ Se eu sou muito louco por eu ser feliz/ Mas louco é quem me diz/ E não é feliz, não é feliz”.
Veja mais fotos da casa de Louro
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