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Jardim Violeta: as sequelas de uma quase-chacina, os sobreviventes e a retomada
Foto de Cláudio Ribeiro
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais

Jardim Violeta: as sequelas de uma quase-chacina, os sobreviventes e a retomada

Cada história da tragédia ocorrida naquela comunidade do Grande Barroso ainda requer cuidados. Os moradores pedem policiamento e atenção, para desfazer medos e se permitirem viver em paz - em algum momento
Marcas de tiros estão em vários pontos das grades da areninha (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Marcas de tiros estão em vários pontos das grades da areninha

"Amigo, queria que você ressaltasse que aos poucos a comunidade está voltando às atividades normais. Com medo, né? Com receio, com ajuda do policiamento. Esse tipo de coisa". Assim me cobrou uma moradora do Jardim Violeta, no bairro Barroso. A mensagem descreve o que é o momento pós-tragédia na comunidade e uma tentativa de amenizar as sequelas.

O pesadelo da noite de 21 de junho último não passou, não passará tão cedo, mas o discurso é de retomada. Ou de fazer diferente. As aflições ali são parte da paisagem, mas a região não quer ser ainda mais mergulhada ao estigma. Sem desrespeitar a memória das vítimas, os moradores querem "limpar esse chão sujo de sangue", reativar a "normalidade das coisas". Apesar dos pesares.

Marcas de tiros nas grades da areninha do Jardim Violeta
Foto: Samuel Setubal
Marcas de tiros nas grades da areninha do Jardim Violeta

Há várias histórias paralelas de todo o episódio que ampliam o drama vivido. Cada uma é impactante, para além do quão terrível foi a ocorrência. O que é contado é como um pedido de socorro — de que a violência não é pauta única. Quem se dispôs a falar, contou detalhes, pediu anonimato. 

"Fazia tempo..."

Antes do horror daquela sexta-feira, Danielzinho havia saído da casa do avô vestido com sua camisa 10 do PSG. Foi para a areninha jogar bola com dois primos. Chegou a ligar para o pai avisando. Ouviu dele que não deveria ir, mas vontade de menino sempre enfrenta a obediência. Não pareceria arriscado. Até gostava do Neymar, mas era o Laion que o deixava animado ultimamente. Torcia Fortaleza, cantava as músicas da torcida "vermelhô-azul-brancô!". O garoto faria 11 anos em setembro.

Dona Ivone se sentara na arquibancada para ver o marido jogar. Fazia isso toda semana. Era a disputa do campeonato de futebol dos quarentões, cinquentões. O lugar estava cheio de crianças, muitas haviam sido retiradas de dentro do campo pouco antes, para que a partida começasse.

Além de cadeiras nas calçadas em horários "permitidos", a areninha é das poucas áreas de convivência do Violeta. Aquela fora inaugurada em setembro de 2020. À época, o então prefeito Roberto Cláudio bateu até pênalti. O projeto vem sendo espalhado pela cidade há exatos dez anos, justamente como espaços de lazer e requalificação em focos de vulnerabilidade social. Os cenários de violência, no entanto, ainda não se desfizeram totalmente — vide os casos que se sucedem no entorno desses equipamentos.

A região atravessava uma "temporada" de calmaria, mesmo com o território das facções rivais do bairro ter a fronteira delimitada pela rua por trás da pracinha do campo. No Violeta predomina o CV; o lado da comunidade do Barreirão tem os da Massa Carcerária. Os sinais da rixa antiga seguem visíveis. A placa da Academia ao Ar Livre ainda está cheia de buracos de bala. Há uma marca ao lado na parede da porta do banheiro da areninha.

Marcas de tiro em placa da academia ao ar livre, ao lado da areninha do Jardim Violeta
Foto: Samuel Setubal
Marcas de tiro em placa da academia ao ar livre, ao lado da areninha do Jardim Violeta

"Fazia tempo que não tinha tiro por aqui, desde que a guerra deles começou, uns dois anos atrás. Só acontecia tarde da noite, madrugada. A gente ouvia às vezes. Ninguém imaginou que fossem fazer isso na covardia como foi, cheio de criança", descreveu outro morador. Ele estava no local no momento do crime, do lado oposto onde as duas mortes aconteceram, onde mais quatro adolescentes (de 14, 15 e 16 anos) e quatro crianças (de 8, 9 e 10 anos) foram baleadas.

Como manda a lei de proteção a crianças e adolescentes e a quem mora em zonas de medo da cidade, ninguém será identificado. A não ser Daniel Levy Cardoso Gomes, 10, e Francisca Ivone Vidal do Nascimento, 48, as duas histórias arrebatadas no infortúnio do Violeta. Os acontecimentos, inclusive, teriam sido muito piores, se não fosse a ação de dona Ivone.

Tiros a esmo

Quando os disparos de pistola calibre 9mm começaram, por volta das 20h50min, a dona de casa cuidou primeiro de afastar as crianças da linha de tiro. Conseguiu alertar e salvar várias. Terminou atingida nas costas, na perna direita e no ombro direito. Caiu abaixo da escadaria central da arquibancada. Danielzinho já havia sido atingido na cabeça (duas vezes) e na perna esquerda (também duas vezes). 

Daniel foi a vítima mais jovem, a única criança dentre os 259 registros de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) de junho de 2024. Ivone foi uma das 25 mulheres assassinadas no mês. São dias de chacina e quase-chacina e escalada de violência que nos desassossegam. 

O homem que fez os primeiros disparos — ou um deles — seria ex-morador do Violeta e teria, pelo jargão das facções, "trocado de camisa". Bandeou-se para o Barreirão. O contado no bairro é que já teria inclusive levado uma surra por causa disso. Ele era investigado por outros homicídios e ameaças a moradores. 

Corrimão da escadaria que leva à arquibancada da areninha do Jardim Violeta, onde os primeiros tiros foram disparados
Foto: Samuel Setubal
Corrimão da escadaria que leva à arquibancada da areninha do Jardim Violeta, onde os primeiros tiros foram disparados

O acusado desceu de um Voyage (haveria outras duas ou três pessoas no carro) e mirou a pichação "CV 2" que borrava a parede ao lado da escadaria da arquibancada. É a ponta da areninha que fica na esquina da rua Benedito Lacerda com a travessa que leva o mesmo nome. Os tiros foram a esmo. Um trecho do inquérito policial do caso (nº 322-781/2024) cita que teriam sido "cerca de 50".

Uma testemunha descreveu que o acusado nem avançou na calçada, "senão teria matado mais gente". Com mais um detalhe contado: ele quase se feriu no próprio crime. "Na hora que o cara começou a atirar, a arma automática girou na mão dele, com o impulso das balas. Ele perdeu o controle. Depois segurou e continuou atirando". Uma caixa d'água no alto de uma casa, que fica a cerca de 120 metros do local, foi perfurada por um dos tiros.

Ainda internados

Um dos adolescentes feridos, que tem 16 anos, é goleiro nos rachas e treinos da areninha. Estava sentado exatamente na ponta da arquibancada que foi o primeiro alvo. Levou oito tiros. Felizmente segue sobrevivendo. É um dos dois, entre os oito feridos, que seguem internados no Instituto Doutor José Frota (IJF). Foi submetido à terceira cirurgia nessa última semana. Na gravidade de seus ferimentos, principalmente na barriga, também tentam debelar uma infecção hospitalar que o acomete. Teve quadro sucessivo de febre nos últimos dias. Está consciente, fala e se alimenta normalmente.

O outro ainda internado é um menino de 8 anos — o mais novo dentre as vítimas. Foi atingido na cabeça, deu entrada diretamente para a UTI. No fim da semana passada, seu quadro melhorou e ele foi transferido para a enfermaria. Já reage a estímulos, faz movimentos leves de braços e pernas, mas ainda não consegue falar e se alimenta por sonda nasogástrica. A família tem pedido a doação de fraldas para o garoto. Seu irmão, também atingido, foi quem o carregou nos braços no momento mais desesperador. Eles eram os dois que jogavam bola com o primo Danielzinho.

Policiais posicionados ao lado da areninha do Jardim Violeta, no bairro Barroso
Foto: Samuel Setubal
Policiais posicionados ao lado da areninha do Jardim Violeta, no bairro Barroso

A menina de 11 anos que levou dois tiros chegou a se fingir de morta. Havia caído justamente ao lado de Danielzinho. Ainda ferida, ela gritou para que a irmã de 6 anos corresse dali. A pequena saiu ilesa, assim como outro irmão delas, de 15.

"Ela se deitou no chão e se fingiu de morta para não morrer, enquanto terminavam as balas, para ela poder pedir ajuda. Foi um tiro no pé e um no quadril. A bala ficou alojada. Levou sete pontos depois que tirou a bala. Está se recuperando", conta a mãe dos três e de mais um, de 12, que não estava na areninha naquele momento.

A mulher é mãe solo, está desempregada. "Eu trabalhava numa lanchonete, mas precisei largar pra ficar com minha filha no hospital. E estou sem o Bolsa Família, que foi cortado". Ela disse ter sido procurada por uma funcionária do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) para regularizar a situação. Até quando repassou a informação, no início desta semana, ainda esperava respostas.

Uma outra jovem levou um tiro de raspão no dedo. O adolescente que levou seis tiros recebeu alta na última terça-feira, 9. Os demais meninos e meninas estão em suas casas. As férias escolares ajudam na recuperação.

Teria havido uma 11ª vítima baleada: uma outra mulher também levou um tiro de raspão. Ela estava na arquibancada ao lado do adolescente ferido com oito tiros. Teria se abaixado a tempo, mas sofreu o ferimento na perna. A informação é que ela optou por se preservar do noticiário do caso.

Um depoimento que consta na investigação, de uma pessoa denominada de "Testemunha Y", menciona que teriam sido "mais de 20 pessoas feridas". Além do IJF-Centro, as vítimas teriam procurado o Frotinha de Messejana naquela noite.

A comunidade já comentava sobre mensagens, espalhadas via Telegram, em que criminosos teriam sinalizado que atacariam o local, que "não iriam dispensar mais ninguém, iriam matar cidadãos e crianças". Mais dois veículos, além do Voyage, teriam sido usados naquela noite pelos criminosos.

Os retoques 

A areninha ganhou nova pintura nesta semana. Retocaram o verde, remendaram com cimento os buracos de bala na parede — contei perto de 30, incluindo as marcas nas grades e corrimões. Diariamente, depois dos fatos, viaturas da Polícia Militar têm feito rondas no local — quando fui, havia duas. Os policiais ficam principalmente entre 15 e 22 horas, segundo os moradores. A reivindicação mais urgente é por uma unidade fixa da PM. 

Areninha recebeu nova pintura, encobriu pichação com as letras da facção e pontos atingidos pelos disparos foram recobertos
Foto: Samuel Setubal
Areninha recebeu nova pintura, encobriu pichação com as letras da facção e pontos atingidos pelos disparos foram recobertos

Diante do contexto, é uma correção rápida de execução pela segurança pública. Não há câmera de videomonitoramento instalada ao redor da areninha. As que funcionam ajudam — se o acompanhamento na central for bem feito. Medida que inclusive valeria para as demais unidades. Algumas mães ainda evitam deixar os filhos irem para escolinhas da areninha sem o policiamento no local. Ainda mais que o terror não se desfez numa região próxima dali. Erradas não estão.

Nesta semana, mais noites de tiroteios e mortes foram registradas na área do Grande Barroso, nas comunidades do João Paulo II, Gereba e Barroso 2. Do caso do Jardim Violeta, cinco dos seis investigados como autores foram capturados — incluindo um adolescente.

Além de mais polícia, a comunidade também está precisando de outras ajudas. A psicológica é uma delas. "Foi uma cena totalmente de terror, amigo, totalmente de terror".

Foto do Cláudio Ribeiro

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