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O primeiro "bar dos entendidos" no Benfica - e sobre uma gente enrustida da cidade
Foto de Cláudio Ribeiro
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais

O primeiro "bar dos entendidos" no Benfica - e sobre uma gente enrustida da cidade

Rosane de Castro lembra das alegrias e das perseguições dos tempos do pioneiro Rango Bar, na avenida 13 de Maio. Ela também cita as confidências que ouvia sobre os não assumidos no meio evangélico, que frequentou por 17 anos
ROSANE de Castro largou o emprego para abrir o Rango Bar entre 1981 a 1983 (Foto: Matheus Souza)
Foto: Matheus Souza ROSANE de Castro largou o emprego para abrir o Rango Bar entre 1981 a 1983

Gay nem era palavra usual nas ruas da provinciana Fortaleza, para descrever os afeminados e as sapatões de então. Talvez nem dos cochichos e fofocas naquele 1981. "Chamavam o pessoal de 'entendido'. A palavra gay só foi aparecer mais lá na frente, nos anos 1990", relembra Rosane de Castro, protagonista de uma dessas pequenas histórias que ouvimos contar e, com o tempo, ganham a devida dimensão histórica, pioneira, representativa.

A jovem tinha 19 anos. Decidiu deixar o emprego de redatora publicitária para encarar a aventura empreendedora. Ao lado de duas sócias — sua namorada da época e uma amiga (não quis dizer o nome de ambas) —, Rosane foi uma das proprietárias do Rango. Aquele é descrito como o primeiro bar gay do notívago e boêmio Benfica. Era um lugar livre, sem restrições. Foram muitas noites de lotação. Isso ainda em plena ditadura militar, quando as manifestações e os comportamentos não podiam ser tão livres.

O estabelecimento era na avenida 13 de Maio, onde hoje é um pequeno prédio residencial no número 2.400 — no térreo está a livraria Arte & Ciência. O imóvel antes era uma casa, ampla, fachada antiga, que se enchia "apenas de pessoas que gostavam de pessoas do mesmo sexo" e também artistas, universitários, cantores e cantoras, músicos, escritores, gente que se sentia acolhida no local. Havia um palco, peças de teatro encenadas, lançamento de vídeos, filmes, obras de arte.

“O Rango se tornou um bar gay naturalmente. Nem havia essa intenção, foi espontâneo. Nossos amigos e amigas começaram a ir. E esses amigos chamavam outros amigos gays. Mas não se dizia gay, nem GLS "Sigla para se referir a ambientes voltadas a "Gays, lésbicas e simpatizantes". Hoje, caiu em desuso"  ou LGBT "Sigla que se refere ao agrupamento de pessoas sexualmente diversas. Significa lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. Hoje, possui variações que incluem queers, travestis, pessoas intersexo, pessoas assexuais etc" , como se chama hoje. Diziam que ali era um bar de entendidos. Era assim que tratavam", conta Rosane. Foi uma história intensa, porém breve. Funcionou somente por dois anos, até 1983. Foi menos tempo do que quiseram as três donas. Foi até onde suportaram.

Das alegrias e libertações, o Rango também se via em situações constantes de problemas. Uma era a Polícia, que, segundo ela, fazia batidas quase diariamente, sugeridas por denúncias anônimas (“das mães”) “de que ali tinha bacanal, que era ponto de venda de droga, quando a gente não fumava nem maconha. E não tinha nada disso, era só um bar”.

Rosane de Castro largou o emprego de redatora publicitária para abrir o bar no Benfica, ao lado de duas sócias. O Rango Bar funcionou de 1981 a 1983
Foto: Matheus Souza
Rosane de Castro largou o emprego de redatora publicitária para abrir o bar no Benfica, ao lado de duas sócias. O Rango Bar funcionou de 1981 a 1983

Numa noite, expediente já encerrado, lembra quando “meteram o pé na porta”, reviraram tudo e, nos discos de vinil, “perguntaram por que que ali só tinha 'música de baitola'”. Ela disse que “sim, só música de baitola” e foram levadas para a delegacia só por aquilo, depois liberadas. Também iam as mães atrás das filhas, mesmo que algumas já fossem maiores de idade. “E tinha os homens héteros, que iam para lá encher o saco das meninas, para dar em cima, para soltar piada”.

Rosane hoje tem 62 anos de idade. Ela cruza a curta biografia do bar com as suas descobertas, autoafirmações e as tormentas pessoais, as alegrias e os preconceitos vividos, a tudo o que precisou atravessar e com as dificuldades que segue lidando. “Para mim foi um tempo muito bom, de muito crescimento. De entender que aquilo sou eu. Que eu sou gay, sou homossexual, sou lésbica, sou sapatão. A gente antes se sentia muito humilhada de ser chamada assim. Hoje a gente não se sente mais. É isso mesmo, sou e pronto”.

Quando ainda tinha 14 anos, Rosane ouviu de sua mãe: "Você é lésbica? Eu falei que era. Ela chorou muito, muito mesmo. Foi muito marcante para mim. Ela ficou uns dois dias sem conseguir falar comigo, silenciosa, mas depois me acolheu. Ela disse que isso era uma enfermidade, uma doença psicológica. Meu pai nunca tocou no assunto. Nada. No bairro já comentavam. Foi libertador, mas foi muito ruim. Porque tinha muito preconceito".

A mãe fez a pergunta porque havia descoberto cartas que ela trocava com Jô (de Joaricele), que conheceu na pré-adolescência, sua primeira namorada (aos 12), com quem se assumiu (aos 14). Que, após um hiato na vida, viria a ser sua companheira por 20 anos. “Eu nunca me escondi e disso me orgulho. Nunca menti, nunca inventei”. Jô partiu há 20 anos, vitimada por um câncer no intestino.

No seu relato, franco e generoso, a sexualidade nem aparece como seu grande problema. Rosane várias vezes pontua um outro drama pessoal, que precisou enfrentar por muitos anos — já desde os tempos do Rango: o alcoolismo. Quando largou a agência de publicidade, seu patrão, Assis Santos, teria aconselhado que ela não fosse justamente abrir um bar, porque já bebia demais.

Jô passou a frequentar uma igreja evangélica. “Ela começou a me chamar para ir para essa igreja, porque eu cheguei a ir a duas reuniões do AA (Alcoólicos Anônimos). Só que eu saí pior do que entrei, porque ouvi tanta coisa absurda. Fiquei muito angustiada. Eu não queria mais. Eu acho que a Jô foi por minha causa, mas ela nunca falou isso”.

Rosane frequentou o meio evangélico por 17 anos, onde tornou-se confidente de muitos e muitas homossexuais que não se assumiam e preferiam manter vida dupla
Foto: Matheus Souza
Rosane frequentou o meio evangélico por 17 anos, onde tornou-se confidente de muitos e muitas homossexuais que não se assumiam e preferiam manter vida dupla

Rosane se converteu. Parou de beber e mergulhou na rotina evangélica por 17 anos, entre 1995 e 2012. Tornou-se desde produtora da rádio evangélica a educadora dos ensinamentos da Bíblia. Diz ter lido “seis vezes, de Gênesis ao Apocalipse”. Opina: “É um livro fantástico, tem histórias sensacionais, mas muito mal interpretado e muito usado para manipular”.

Ela revela ter sido confidente de “muitos e muitas” homossexuais não assumidos, enrustidos, entre seus colegas evangélicos. “Fui descobrindo aos poucos que havia uma comunidade LGBT dentro da igreja, mas oculta. Os homens tinham vida dupla. E, aparentemente, dentro da igreja não tinha ninguém que dissesse que eles eram gays. E as mulheres sublimavam. Falavam que tinham um bom casamento. Eles e elas me procuravam. Não queriam conselho, só queriam conversar”.

Rosane decidiu deixar a igreja seis anos atrás. “Eu saí antes de ser expulsa”, afirma. Havia pressões, mas por um tempo teriam associado sua presença à impossível cura gay. “Meu pastor sabia”, garante. “Não perdi a minha fé. Eu continuo acreditando em Jesus”. Hoje ela cuida de um irmão e uma irmã, os dois com problemas de saúde. Nessa fase da vida, Rosane se queixa de que a comunidade LGBT não dá suporte a pessoas da terceira idade. “Existem muitos gays idosos em asilos, abandonados pela família”. É seu lamento.

E ainda bem que alguma coisa deste mundo mudou para melhor: Homofobia é crime!

Foto do Cláudio Ribeiro

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