Yuri Saboia fez 53 anos no dia que conversamos. Ele guarda até hoje as miniaturas de peixeira e bainha de couro, do tamanho de um dedo indicador, que seu vô Antônio lhe deu de presente. Foi um susto para a mãe, dona Marli. O menino tinha três anos de idade. Já crescido, soube por ela que bastou o avô virar as costas para, num alívio, o "brinquedo" ser retirado de suas mãos. A relíquia miúda está afiada até hoje.
É daquele momento que o professor de Geografia mapeia seu marco zero pessoal de aproximação e interesse com a cutelaria. O termo vem de cutellus, faca em latim. É o ofício milenar de transformar o pedaço de aço bruto em facas e tantas lâminas e instrumentos cortantes de várias culturas. Das peças mais simples às com status de arte.
Antes das primeiras roupas, o homem já portava uma faca, lembra Yuri. O objeto ajudou na própria evolução da espécie humana. A pedra lascada pontiaguda virou ferramenta de sobrevivência. Era para se alimentar, depois veio o digladiar. Depois o homem passou a fundir e talhar o metal.
Yuri leciona há três décadas. É seu sustento. Ainda considera a cutelaria que pratica como um hobby, embora a oficina que tenha montado no quintal de casa já lhe permita criações belíssimas. É um autodidata - que assistia a vídeos pela internet como curioso. Tornou-se um entusiasta e estudioso.
Começou a forjar suas primeiras facas, de modo mais regular, a partir de 2006. Antes, "brincava de fazer". Passou a criar e vender sob encomenda. Só no início deste ano buscou a primeira certificação em formato presencial, através de um curso em Pernambuco.
"A cutelaria tem a ancestralidade e é quase uma alquimia. O que mais curto é essa transformação, realmente mágico", descreve. A gênese de uma faca segue processos físicos, matemáticos, químicos, artísticos em cada peça. A chapa de aço, um desenho, o corte, o fogo da forja (até mais de 1.000 graus) para expandir as moléculas e deixar o material maleável. O molde é a marretadas sobre uma bigorna ou num martelo hidráulico.
A têmpera, com o metal incandescente mergulhado em óleo, interrompe a bagunça molecular e dá a rigidez de acordo com o uso que a faca terá ("faca para tudo não existe, é mito"). Mais marretadas nessa hora. A lâmina aparece após o aço ser desbastado nas lixas mecânicas, que também ajudam na finalização.
O domínio de técnicas permite a sofisticação de facas banhadas até com café, para embelezar o metal. Chapas de aços distintos, misturadas e aquecidas e prensadas ao mesmo tempo, formam as lâminas de damasco. São das mais bonitas.
Os cabos de madeira natural são raros nas customizações. Os compostos mais usados têm micarta (tramas de tecidos com resina) ou madeiras estabilizadas (também com resinas). Há empunhaduras de chifre de cervo, de material fossilizado, lâminas de meteorito ou de ouro.
É um adestramento do metal, do couro, da madeira e da mente criativa. "O cuteleiro é como se fosse uma pessoa equilibrada em duas canoas. Uma canoa é a faca como ferramenta, a outra canoa é a faca como arte", diz, citando Rodrigo Sfreddo, um dos profissionais mais respeitados do País. Há o fio amolado entre ser útil ou ser arma. O estigma de aparecer na maioria dos crimes de ódio, de machismo. Pode ser beleza, mas também é brutalidade.
Não há números de quantos cuteleiros existem no Ceará. Dois municípios do Cariri, Potengi e Jardim, são tradicionais na fabricação em maior escala. Neste domingo, 11 de agosto, em João Pessoa, na Paraíba, será realizada a 1ª Mostra de Cutelaria do Nordeste (MCNE), uma grande exposição de itens e produtores da região. Yuri participará.
Ele não sabe se um dia viverá apenas dessa atividade. Mesmo criando há 18 anos, ainda se considera "iniciante". "Tenho vontade de aprender muito mais para poder ensinar. Talvez com vivências, em que a pessoa venha e aprenda a fazer a própria faca", projeta.
Mais informações podem ser obtidas por telefone (85-98104.4002, WhatsApp ou Telegram), no Instagram (@ysfacasartesanais e @ysbladesmith) e Facebook (yurisaboia7)