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A cura embonecada
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

A cura embonecada

O avanço da ciência e da tecnologia, com a chegada das Ias, lança desafio dos limites do ensino da medicina. Bonecos podem desempenhar um papel valioso na educação médica, mas obviamente não devem substituir a experiência humana
Tipo Opinião
capa c&s (Foto: ISAC BERNARDO)
Foto: ISAC BERNARDO capa c&s

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Provavelmente minhas informações estão incompletas e certamente parciais, mas recentemente um conhecido me falou que algumas faculdades de medicina contam com bonecos anatômicos que replicam quase integralmente uma pessoa, reproduzindo com precisão as estruturas e funções do corpo humano, além de serem dotados de inteligência artificial que permite a interação usando um sintetizador de voz. Segundo seu entusiasmo, os bonecos falam os sintomas, reagem verbalmente ao toque e até gemem.

Não há dúvida de que treinar para realizar uma endoscopia, uma intubação ou qualquer outro procedimento invasivo, ou até mesmo encontrar uma veia para a aplicação de um soro em um boneco, é muito vantajoso para os futuros pacientes de carne e osso. Oferecendo um ambiente controlado para a prática e experimentação, o estudante pode praticar quantas vezes quiser até se tornar um expert no procedimento, sem causar dor, desconforto ou mesmo cometer algum erro médico grave.

Se essa é a intenção das faculdades, só podemos dar os parabéns pelo investimento em tecnologia, cujos custos espera-se que não sejam repassados aos pais dos alunos. O que me preocupa, no entanto, é se tal prática indica que os nossos futuros cuidadores estarão cada vez menos em contato com pacientes reais, limitando-se a aprender com essas representações inanimadas feitas de silicone e plástico.

Caso isso esteja acontecendo, essa prática acarreta consigo uma série de perigos que ameaçam obscurecer a verdadeira essência do cuidado médico, correndo-se o risco de perder de vista o aspecto humano da medicina. O contato direto com os pacientes não se limita apenas à aplicação prática dos conhecimentos médicos; é uma lição em empatia, compaixão e comunicação.

Os bonecos, por mais realistas que possam ser, não podem replicar a complexidade das emoções humanas, a ansiedade do paciente diante de um diagnóstico incerto, ou a confusão e o medo que frequentemente acompanham a doença. Somente ao interagir com pessoas reais, os futuros médicos podem desenvolver a sensibilidade necessária para entender não apenas as doenças do corpo, mas também as do espírito.

Além disso, a prática clínica em ambientes controlados não reflete com precisão as nuances da vida real. Os pacientes não se comportam como bonecos de laboratório; suas condições médicas são frequentemente complicadas por fatores psicológicos, sociais, culturais e ambientais. A capacidade de lidar com essas complexidades não pode ser adquirida apenas através de simulações controladas; requer experiência prática e uma compreensão profunda da interação entre a saúde e o meio ambiente.

Outra preocupação decorrente do uso excessivo de bonecos é a possível negligência da importância da ética médica. Os estudantes, imersos em um mundo artificial onde os "pacientes" não sentem dor real nem têm direitos, podem ser tentados a adotar uma abordagem desapegada e mecanicista em relação à prática médica. A empatia e o respeito pela autonomia do paciente, pilares fundamentais da medicina ética e humanizada, correm o risco de serem relegados a um segundo plano.

Além disso, há uma dimensão prática a considerar: a transição do ambiente de aprendizado para a prática clínica real pode ser abrupta e desafiadora para os estudantes que foram criados em um mundo de simulações. A incerteza, a pressão do tempo e a responsabilidade pela vida dos pacientes são aspectos que não podem ser totalmente capturados em um ambiente simulado.

Ademais, recordemos que a tecnologia comentada geralmente só está disponível em faculdades particulares, onde todo o instrumental médico existe e está à disposição, com todas as máquinas, insumos e aparelhos para exames. O que pode ser considerado como o padrão desejado dos atendimentos pode, por outro lado, fazer com que o estudante se limite a padrões de excelência que não encontrará na realidade. Assim, ao invés de capacitá-lo para qualquer tipo de atendimento, pode ser que acabe por torná-lo dependente, chegando ao ponto de, em uma emergência, o profissional quedar-se inerte e sem iniciativa, visto que não saberá o que fazer sem o suporte ótimo com que aprendeu.

Os bonecos podem desempenhar um papel valioso na educação médica, mas obviamente não devem substituir a experiência humana. A medicina não é apenas uma ciência, mas uma arte; uma arte que exige sensibilidade, compaixão e um profundo respeito pela humanidade. Somente ao abraçar essa realidade complexa e multifacetada, os futuros médicos estarão verdadeiramente preparados para enfrentar os desafios e as responsabilidades que os esperam no mundo real da prática clínica, na certeza de que a vida não é embonecada.

 

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