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Nossos dragões de estimação
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

Nossos dragões de estimação

Quem sabe essas nossas feras particulares nos recordem que existe força na revolta justa, e que se expressam na fervura de uma indignação autêntica
Tipo Crônica
 "Dragões e Coruja", guace sobre cartão de Chico da Silva. Acervo: Museu de Arte da UFC (Mauc) (Foto: Reprodução/Itaú Cultural)
Foto: Reprodução/Itaú Cultural "Dragões e Coruja", guace sobre cartão de Chico da Silva. Acervo: Museu de Arte da UFC (Mauc)

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Um dia desses vi dois amigos tendo uma pequena discussão. Foi coisa banal, sem maior importância. Nem lembro ao certo a razão deles terem se exaltado tanto assim. Logo depois pediram desculpas e tudo voltou ao normal.

Fiquei pensando em quantas vezes nos exaltamos sem maiores motivos e dizemos palavras que nos arrependemos logo após. Por vezes expressamos coisas que nem estão em nossos corações, mas que saem em atropelo, como se precisássemos daquele momento de explosão. Talvez a explicação mais simples seja que guardamos algo que nos implode por dentro, e ao não procurarmos resolver o assunto, aquilo acaba a nos impelir a explodir por fora.

É como se dentro de nós eclodisse um ovo de dragão, incubado pelo calor de nossos pensamentos. Com o passar do tempo, esse ovo vai tomando forma e, sem que percebamos, ele se desenvolve, alimentado pelos sentimentos que lhe oferecemos. A cada dia, ele cresce um pouco mais, quase imperceptivelmente, mas cresce. Um contratempo no trânsito, um grama a mais de peso no ombro dele. Uma inveja desmedida, mais uma gota no cálice da besta. Um descontrole na fila do supermercado e uma asa começa a despontar.

Se deixarmos o tempo passar e continuarmos a nutrir esse monstro, em poucos anos, ele estará nos dominando, e qualquer pequeno deslize nos fará cuspir labaredas pelas ventas, queimando pontes, esturricando amizades e calcinando destinos.

Dizem que domar um dragão não é coisa para leigos e só com ajuda profissional conseguimos apaziguá-los ou, pelo menos, os conduzir com melhor propósito.

Por outro lado, embora possa parecer herético e até blasfemo dizer isso, gosto de pensar que temos esses dragões dentro de nós por algum motivo e se eles persistem, é porque as razões ainda estão lá. Acho mais realista assim que imaginar que somos querubins em forma de carne ou seres em constante e ininterrupto processo de iluminação.

Claro que não os identifico com as criaturas míticas, mas sim como dragões particulares e íntimos, formados por nossas cicatrizes, medos, mágoas e ressentimentos ainda não totalmente resolvidos. Não são propriamente feras ruins, não acusam nem fazem mal deliberadamente para ninguém e podem até ser representados como o que um dia fomos e até mesmo o pior que poderíamos ter sido.

De alguma maneira eles foram contidos, alguns mais que outros, mas esses nossos dragões existem porque precisam existir. É como se fossem pequenas brasas de nossas frustrações, ainda não de todo extintas, uns pontinhos minúsculos que brilham com olhos vermelhos na escuridão de nós mesmos, esperando apenas uma rufada de ar para crescer e um pouco de folga nas correntes para virem para fora.

Quem sabe esses dragões representem uma força bruta, algo primitivo e instintivo de proteção; quiçá sejam uma potência de defesa que necessita de direcionamento; possivelmente sejam lembranças de que a posição mais justa nem sempre se confunde com tolerância excessiva, e que a mansidão desmedida pode ser mais indicativa de medo e submissão do que de elevação e consciência das limitações humanas.

Quem sabe essas nossas feras particulares nos recordem que existe força na revolta justa, e que se expressam na fervura de uma indignação autêntica, indicam o arrebatamento de uma aversão real e confirmam a potência de uma ira santa. Quem sabe demonstrem que é nosso dever nos defender de investidas ilegítimas.

É claro que não devemos deixar nossos dragões soltos por aí, lançando chamas aleatoriamente, mas não sei se devemos os controlar ao ponto de os reduzir a lagartixas branquelas e que só comem moscas e muriçocas. Também não sei se é melhor domá-los, limitá-los, colocá-los em um curral de conveniências, confinando-os nas traves de uma civilidade falsa e hipócrita.

Só sei que eles existem. E, se existem, é porque são necessários.

Foto do Danilo Fontenelle

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