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Sem pé nem cabeça
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

Sem pé nem cabeça

Às vezes a vida se apresenta sem pé nem cabeça. Às vezes, a gente fica cheia de dedos. Às vezes, com protuberâncias e extensões. Mas tudo faz o nosso caminhar.
Tipo Crônica
Foto: Danilo Fontenelle "É que seus dois dedos médios dos pés se destacavam claramente dos demais na sandália aberta, projetando-se, em uma atitude de olímpica superioridade"

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Não sei se isso acontece com todo mundo, mas comigo é bem frequente. Estou falando quando você está em um canto qualquer e, do nada, algo chama sua atenção. Daí, para se concentrar naquele novo aspecto, é um pulo de sapo.

Em geral permaneço calado, apenas observando e sem divulgar meus pensamentos por vezes politicamente incorretos. Em algumas ocasiões, para infortúnio de quem estiver comigo, deixo minha curiosidade tomar conta e faço perguntas inconvenientes ou até deixo escapar comentários atualmente tidos como censuráveis, mas tudo sem maiores consequências.

Um dia desses, por essas coincidências da vida e infortúnios do politicamente correto, dei de cara com uma moça com pés diferentes. Aliás, não eram os pés propriamente ditos, mas dois dos seus dedos.

Não possuíam joanetes, esporões, calosidades, unhas encravadas, descamações ou, até onde pude ver, micoses. Também não era o caso de polidactilia. Ela não tinha um ou mais dedos extras, mas apresentava dois especiais que valiam por vários.

É que seus dois dedos médios dos pés se destacavam claramente dos demais na sandália aberta, projetando-se, em uma atitude de olímpica superioridade.

A dona não aparentava nenhum constrangimento, balançando os pés e seus apêndices magros e compridos com a majestade e desenvoltura de quem sempre teve que comprar sapatos acima do número, mas nunca fez empenho.

Puxei conversa e a moça era tão simpática e educada quanto aquelas extensões me fascinavam. É que exalavam a confiança de quem sabe o que são e pouco se importam com a opinião dos outros, com aquele jeito descontraído e descuidado de quem sabe ser especial.

Conversamos por alguns instantes e soube não ter parentes na Grécia. Ela estranhou a pergunta, e mudei de assunto. Indaguei isso porque os pés com os segundos dedos maiores que os demais são chamados dedos gregos.

Isso me fez imaginar Sócrates e Platão filosofando ao caminhar e deixando um rastro peripatético bem característico e fácil de encontrar, tipo, “Vocês viram os filósofos?” – “Ah, é só seguir essas pegadas aí, ó”.

Fiquei pensando na possibilidade de um curupira helênico e seus pés com dedões virados ao contrário, ou como os espartanos protegiam essas extensões. Quem sabe eram seus pontos fracos, qual Aquiles e seu tendão e, nas batalhas, em vez de escudos e espadas, os inimigos ameaçavam com alicates de unhas.

Aí passei a imaginar bailarinas gregas usando sapatilhas com uns bolões na ponta e a estranheza de namorados ao verem moças chiques declinando do charme ao se despirem e revelarem que tiveram que cortar a pontinha da meia-calça para confortar a cabeça dos dedos salientes.

Imaginei que um príncipe grego não teria dúvida alguma sobre a quem pertenceria o sapatinho de cristal de uma Cinderela assim, e como deve ser difícil usar pés de pato.

Suspirei de alívio ao saber que a moça não jogava futebol. É que a tinha imaginado dando chutes que sempre desviavam sua trajetória ou mesmo furavam a bola. Ela também não pagava a mais por pedicures.

A conversa continuou tranquila e agradável, com a moça me olhando estranho a cada indagação, principalmente ao me responder que não mandava no namorado.

Não revelei a superstição cearense a respeito de dedos assim, e me despedi com um aperto de mão e uma última olhada para aqueles que bem poderiam servir como mini varas de pescar ou serem usados como saca-rolhas.

Ah, só para finalizar. Quem tem o dedão do pé mais longo, com os outros dedos diminuindo gradualmente de tamanho é possuidor de pés egípcios e quem tem os todos os dedos dos pés aproximadamente do mesmo comprimento é dito com pés romanos.

Enquanto isso, vamos vivendo assim mesmo, de vez em quando sem pé nem cabeça.

Foto do Danilo Fontenelle

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