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Os clientes que não voltam
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

Os clientes que não voltam

A máxima do comércio ainda continua vigendo, como uma lei eterna e irrevogável: o dono tem que estar com a barriga no balcão do seu negócio e são os olhos do dono que engordam o gado.
Tipo Crônica
Na coluna desta semana, Danilo Fontenelle fala de sua experiência desagrável em uma padaria (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Na coluna desta semana, Danilo Fontenelle fala de sua experiência desagrável em uma padaria

 

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Um dia desses, em uma padaria local, descobri que a invisibilidade de Giges realmente existe. Platão conta que Giges era um simples pastor que, certo dia, após uma tempestade e um terremoto, encontrou uma fenda na terra e, dentro dela, um antigo túmulo que continha um cadáver usando um anel de ouro.

Ele pegou o anel e, mais tarde, ao participar de uma reunião com outros pastores, descobriu acidentalmente que, ao girar o anel no dedo, ele se tornava invisível. Percebendo o poder do anel, Giges fez uso dele para cometer atos imorais sem medo de ser descoberto ou punido.

O filósofo usa o mito do anel de Giges para argumentar que ninguém é justo por vontade própria, mas apenas por medo de ser punido ou por desejo de ser recompensado. Ele sugere que, se alguém possuísse um anel que conferisse total impunidade, essa pessoa agiria injustamente, pois não haveria consequências para suas ações.

Pois bem, o marcante em minha experiência é que vivenciei o anel de Giges ao contrário, ou seja, assim que peguei uma ficha de atendimento nessa padaria e, imediatamente após entrar pela catraca, os atendentes se tornaram invisíveis.

Minha intenção era simplesmente comprar alguns salgados, em uma atitude claramente indulgente, após uma semana cheia de atribulações, ainda mais com meu gato Lee convalescendo de duas cirurgias grandes.

Dirigi-me à ilha envidraçada das prateleiras e expositores repletos de uma boa variedade de petiscos. Não tinha ninguém para atender. Fiquei um tempo batucando a ficha no vidro, para ver se chamava a atenção de alguma das três atendentes que, a dois passos do setor, conversavam.

Uma fingia fazer anotações, outra lentamente dobrava guardanapos como se fosse a coisa mais importante a se fazer no final de tarde em que os clientes se avolumavam, e a terceira basicamente olhava para o tempo.

Dei boa tarde e perguntei se alguém atendia no setor, tendo a que dobrava seus origamis indicado, com a ponta do queixo e espichando o lábio inferior, que a que fitava para o firmamento iria me acolher. Esta, surpresa, pegou a tampa de uma caixa vazia e fingiu estar ocupada, sequer olhando para mim e dando as costas sem menção de se mexer do lugar.

Não consigo entender como alguém que trabalha com vendas age dessa maneira e fico pensando onde estava o gerente desse estabelecimento e que o dono nunca saberá dessas coisas que devem acontecer diariamente.

Imagino que, quando foi decidido que a padaria seria montada, os donos e suas famílias traçaram planos, calcularam o investimento, reuniram suas economias e empreenderam. Muito provavelmente foram eles que começaram a atender, limpar, ficar no caixa e foram, com o tempo, expandindo suas atividades, sempre se dedicando pessoalmente ao trabalho, caprichando no atendimento e fidelizando clientes.

Daí, quem sabe, após alguns anos de esforço, entenderam que o negócio já poderia andar sozinho, sem maior supervisão direta, e deram maior autonomia aos empregados, confiando que a qualidade seria mantida. Ledo engano.

A máxima do comércio ainda continua vigendo, como uma lei eterna e irrevogável: o dono tem que estar com a barriga no balcão do seu negócio e são os olhos do dono que engordam o gado.

Sem isso, teremos cada vez mais clientes que, como não foram vistos ao precisarem de atendimento, jamais voltarão. E aquele comércio, se não retornar às origens, virará o túmulo dos sonhos dos seus proprietários.

Quanto às funcionárias, deveriam entender, como Giges acabou aprendendo, que a verdadeira justiça não depende de recompensas ou punições externas, mas de uma harmonia interna da alma e que é intrinsecamente melhor ser justo que injusto. Isso, além de correto, conserva empregos.

Foto do Danilo Fontenelle

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