
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
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Minha sogra está de mudança. Ficou viúva recentemente. Mais de sessenta anos de casada, morando na mesma casa. Chegou ali novinha e em núpcias. Ali criou os quatro filhos. Dali os viu irem para a escola, faculdade e cerimônias de casamento. Voltou para ali após o nascimento de cada neto e foi ali que chorou as primeiras lágrimas pela partida do marido.
Vai se mudar para um apartamento mais próximo das filhas. É mais moderno, com sol entrando cedo pelas janelas. Fica em frente a um clube onde poderá fazer hidroginástica e conviver com pessoas da sua idade. Netos juram visitas mais frequentes. Genros e noras prometem passeios e almoços.
Está animada. Deseja viver mais leve, sem pensar na insegurança de um bairro distante nem com canos, telhados e portas que não funcionam direito há décadas.
Ela vai levar pouca coisa. A maioria, fotos. Os guarda-roupas são menores. Os móveis estão antigos e até com cupim. Serão substituídos por algo mais atual e funcional. Uma das filhas assegura que o ambiente ficará um brinco, como o de uma adolescente morando só pela primeira vez.
Tive um amigo desses de infância parecido com ela. Ele não era o mais inteligente da turma, nem o mais rico nem o que fazia mais sucesso com as meninas. Ele era um garoto simples, talvez até simplório, mas nunca esqueci do jeito dele tratar as pessoas e as coisas.
Para ele, a vida era em conexão. As pessoas, os animais, as coisas, tudo existia e se relacionava por algum motivo. Para ele, não existiam coincidências nem acasos. Tudo servia a um propósito, e ele sempre via ou imaginava ligações singulares que uniam pessoas, coisas, animais, plantas e até pedras. Acreditava, sabe-se lá com que base, que há sempre um vínculo que nos une e fazia questão de pontuar essas junções como algo especial e único.
Lembro de uma vez em que estava na sua casa e o pai chegou com um par de chuteiras novas. Há tempos ele jogava bola com seu tênis rasgado, de solado liso de tão gasto e que mais atrapalhava que ajudava. Ele ficou contentíssimo e calçou de imediato.
Corremos juntos para o campinho, mas, de repente, no meio do caminho, ele parou como que paralisado. Vi que lágrimas começaram a se formar em pocinhos e sua expressão era como se estivesse se dando conta de que estava fazendo algo muito errado. Balbuciou alguma coisa que não entendi e voltou correndo para casa.
O encontrei ajoelhado ao pé da cama, abraçado com os tênis velhos. Estava como que em confidências, acariciando os cadarços puídos e falando baixinho. Ele agradecia todos os momentos de alegria que viveram juntos, os caminhos que eles o tinham ajudado a percorrer, as poças de lama que enfrentaram e os gols que fizeram.
Disse que nunca os ia esquecer, mas desejava que eles descansassem. Beijou o par como quem beija um pai moribundo, os devolveu para debaixo da cama e voltamos para o campinho.
Nunca o vi jogar tão bem. Foi o artilheiro da partida. Não sei se pelas chuteiras novas ou se jogava por aqueles que ficaram em casa.
Para algumas pessoas, partir é uma coisa trivial, na percepção correta de que a vida segue, apesar de tudo. Muitas outras têm dificuldade em dizer adeus. Sou uma delas. Para mim, parece existir uma espécie de magia triste nas palavras de despedida e sempre sinto um nó na garganta, além do peso descomunal, ao deixar pessoas e coisas que considerei significativas.
O ruim de envelhecer é que os adeuses se tornam mais frequentes e dolorosos, e cada etapa dessas passa a constituir uma pequena tragédia pessoal.
Podem até dizer que isso é excesso de apego e que a vida deve ser encarada como fluida e fragmentária, em uma sequência de remoção lógica e exclusão racional. Não concordo. A vida não deve ser assim tão descartável.
Quem sabe o ideal é ser um pouco desse amigo e um pouco da minha sogra. Talvez o mais indicado seja ter a coragem de deixar um pedaço de si para trás, em cada lugar e em cada pessoa, e seguir em frente mais leve e com pouca bagagem, preservando tudo dentro do coração.
Assim, quem sabe, cada adeus traga consigo a memória durável de tudo o que sonhamos e vivemos.
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