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O dia da mudança
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

O dia da mudança

O apartamento próximo das filhas foi entregue. Móveis novos foram comprados. Preparam seu enxoval novo, no paradoxo de quem preparou os delas. Hora de rever praticamente toda uma existência
Tipo Opinião
FORTALEZA, CE, BRASIL, 07-01-2020: Expedição Borboletas. Igreja da Parangaba dos Jesuitas. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)
 (Foto: 09 19:54:01)
Foto: 09 19:54:01 FORTALEZA, CE, BRASIL, 07-01-2020: Expedição Borboletas. Igreja da Parangaba dos Jesuitas. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)

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Minha sogra deixa, com surpreendente serenidade, a casa onde viveu os últimos sessenta anos. Sempre morou na Parangaba e ali fez amizades duradouras. A casa foi construída pelo próprio marido, no terreno aos fundos da casa do sogro. Os quintais eram correspondentes e se confundiam. Por entre pés de goiaba, abacate e sapoti, os filhos brincavam e ralavam os joelhos. O intercâmbio de pratos no almoço e no meio da tarde era comum, no tempo em que lanche era merenda. Os filhos foram criados na interseção de costumes e valores, com a presença dos avós sempre acentuada.

Diz que a casa guarda lembranças em todos os espaços. De vez em quando, ouve o marido percorrer os corredores e relembra dos momentos marcantes. Sabe onde ficavam os berços e onde cada um dos filhos se segurou para aprender a andar. Recorda dos primeiros amores juvenis e como sofreu, solidária, com as desilusões de cada um. Lembra da rotina de preparar cedo as três filhas e o caçula para o colégio. Iam de ônibus, com recomendações diretas para o motorista parar em frente à entrada.

Fala da preocupação com o jeito desaforado da mais velha e com as notas de outra; comenta a paciência com a distração da mais nova e a compreensão com o jeito taciturno do caçula. Orgulha-se de tê-los todos formados e de serem pessoas de bem. Agora, gaba-se dos netos e netas e até da bisneta. Gosta de tê-los por perto, mimando-os e dando dinheiro escondido.

O dia da mudança está se aproximando. O apartamento próximo das filhas foi entregue. Móveis novos foram comprados. Preparam seu enxoval novo, no paradoxo de quem preparou os delas. Hora de rever praticamente toda uma existência. Tempo de descartar o que já não presta mais. Momento de revisão de prioridades. Oportunidade de reavaliar importâncias. Ocasião de revisitar lembranças. Todos foram chamados a ajudar no descarte, com a prerrogativa de poder escolher o que guardar como lembrança.
Aos poucos foram descobertas xícaras com asas quebradas. Depois surgiram copos trincados e talheres desfalcados.

Um pouco mais de exame revelou lençóis puídos, redes manchadas, travesseiros imprestáveis, peças que já não servem, estão fora de moda ou não são mais usadas. Móveis antigos e alguns danificados, aparelhos eletrônicos que não funcionam mais ou que foram substituídos por versões mais novas foram separados para doação.

Nunca pensei que uma casa pudesse ter tantas panelas, potes, utensílios e eletrodomésticos desgastados ou quebrados, além de uma profusão de contas pagas, documentos antigos, revistas, jornais e papéis que não são mais necessários. Livros que não serão relidos e revistas antigas que ocupam espaço formaram montes para doação e reciclagem. Itens decorativos que não serão utilizados na nova casa, cosméticos, medicamentos e produtos de higiene que já passaram da validade foram para o lixo. Até vasos de plantas quebrados eram retidos sem nenhuma utilidade e tomaram seu destino próprio.

Meu filho recuperou uma coleção de revistas de dinossauros e algumas miniaturas de animais, itens que marcaram sua infância e estavam por ali, esperando o último resgate. Um copinho rosa, de plástico simples e barato, dado por um tio há mais de cinquenta anos para uma garotinha gordinha e atrevida, agora faz parte das relíquias recuperadas.

Descartar itens ajuda a simplificar o processo de mudança e a começar no novo lar com menos tralhas e mais organização. É também uma oportunidade de fazer doações para caridade, reciclar materiais e repensar o que realmente é necessário manter. As lembranças não estão nas coisas, mas nas vivências. Sim, tudo isso é racional, prático e deve ser feito.

Mas percebo, no olhar da minha sogra, a dor de ver, aos poucos, a casa ficando vazia. Parece nos olhar com resignação. O quintal balbucia palavras de nunca mais. As paredes sussurram segredos que nunca serão compartilhados. O chão, de taco e cerâmica, murmura lamentos pelos passos que não serão mais dados. E suas portas e janelas rangem um lamento de despedida.

Foto do Danilo Fontenelle

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