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Conceber sensibilidades
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

Conceber sensibilidades

Uma de suas gatinhas, havia falecido. Ela sempre fora frágil. Ele e Jessica, sua esposa, a acolheram e cuidaram dela desde filhotinha até seus últimos momentos. Fizeram tudo o que era possível por aquela vira-lata carinhosa de pelo eriçado
Tipo Opinião
A gatinha Brigitte (Foto: Danilo Fontenelle)
Foto: Danilo Fontenelle A gatinha Brigitte


No campo material, é comum que se considerem bem-sucedidas as pessoas que acumulam riquezas. Em uma cidade de muros baixos como a nossa, muitos herdeiros ostentam as conquistas de seus antepassados, ainda que de origem duvidosa, sem terem contribuído em nada para a opulência que exibem.

Talvez uma das maiores preocupações de todo pai e mãe seja que seus filhos se tornem pessoas de bem – e não necessariamente pessoas de bens. Claro que nos importamos com suas realizações acadêmicas e profissionais. No plano prático da vida, empregos, negócios e atividades rentáveis têm sua importância. Mas, no fundo, a maior inquietação é que eles cresçam com valores e princípios sólidos, que saibam o que realmente importa.

Ser uma pessoa "de bem" vai muito além da conta bancária ou das aparências; trata-se de observar as ações, as atitudes e a forma como alguém interage com o mundo ao seu redor. Todos já ouvimos histórias de adolescentes que desprezam e humilham colegas. Cada pai sabe que isso pode acontecer até nas melhores escolas. Meu medo não era só que meu filho fosse vítima disso, mas que ele pudesse, de alguma forma, praticar o mesmo.

Outro dia, algumas dezenas de motos passaram voando perto do meu prédio, todas com a descarga alterada. Eram jovens arriscando suas vidas – e as de quem estivesse por perto. Ser irresponsável na vida às vezes custa caro. Meu medo não era apenas que meu filho fosse influenciado por atitudes assim, mas que ele mesmo pudesse ser uma má influência.

Soube de um jovem que se envolveu com drogas. Buscava mais prazer em uma vida onde os pais já tinham dado tudo. O que começou como diversão se transformou em uma fuga, que logo se tornou um exílio do qual ele nunca mais voltou. Esse também foi um medo que tive.

Um amigo se gaba do sucesso do filho. Formou-se em economia, trabalha no mercado financeiro, ganha mais que a soma de todos na família. Mora em um paraíso fiscal, não se casou, vive para o trabalho. Há anos não visita os pais. Aos 31, já teve um princípio de infarto. Graças a Deus, meu filho nunca se interessou por esse tipo de vida.

Terror dos terrores. O filho de um conhecido se formou em Direito e, imediatamente, foi contratado por um grande escritório. O jovem sabe pouco sobre a profissão, mas frequenta lobbies como ninguém.
Outro dia, meu filho – agora um homem feito – me contava sobre seu novo trabalho, os desafios e as conquistas diárias. Mas seus olhos, que sempre me revelaram mais do que suas palavras, ainda traziam um brilho entristecido. Ele estava de luto. Uma de suas gatinhas, havia falecido. Ela sempre fora frágil. Ele e Jessica, sua esposa, a acolheram e cuidaram dela desde filhotinha até seus últimos momentos. Fizeram tudo o que era possível por aquela vira-lata carinhosa de pelo eriçado.

Foi naquele instante, ao ver o carinho e o pesar nos seus olhos, que percebi algo que, há muito, estava diante de mim, mas que a correria do dia a dia me impedia de notar plenamente: meu filho Gabriel se tornou uma pessoa de bem.

Ele trilhou seu próprio caminho – e que caminho bonito escolheu. Sempre tratou todos com respeito, independentemente de suas condições. Tem a capacidade de se colocar no lugar do outro, de sentir suas dores e compartilhar suas alegrias. Atua com integridade em todas as situações. Cumpre seus compromissos e é confiável. A generosidade, seja de recursos, de tempo ou de atenção, é uma de suas marcas. E ele se alegra com o bem-estar dos outros.

Sentado conosco na casa da avó, lembro que foi o primeiro lugar no vestibular da UFC; concomitantemente, fez outra graduação. Seu coração generoso o direcionou a ajudar as pessoas, e ele se tornou professor de inglês. Sua alma de artista o conduz a tornar o mundo mais colorido, dedicando-se a desenhos, histórias em quadrinhos e miniaturas. Ele é justo, simples, generoso, caridoso e sabe escutar os outros – qualidades que não se aprendem nos livros, mas sim na vida.

Eu gostaria de dizer que tudo fez parte de um grande plano, que cada conselho, cada conversa, cada bronca foi cuidadosamente pensada para moldá-lo na pessoa que é hoje. Mas a verdade é que a paternidade é, muitas vezes, um exercício de improviso. E, ao vê-lo hoje, sei que, em meio a todos os acertos, erros e medos, algo deu muito certo. Bem certo.

Foto do Danilo Fontenelle

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