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O jogo do "Quem Sabe"
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

O jogo do "Quem Sabe"

De repente, a vida se tornou mais leve, com os pingos da chuva leve lavando suas almas e aquecendo os corações
De repente, a vida se tornou mais leve, com os pingos da chuva leve lavando suas almas e aquecendo os corações (Foto: Fco Fontenele / O POVO)
Foto: Fco Fontenele / O POVO De repente, a vida se tornou mais leve, com os pingos da chuva leve lavando suas almas e aquecendo os corações

Um dia desses aquele amigo de sempre, o Machista normal, me contou que aprendeu um novo jogo. Foi a esposa que ensinou.

Eles estavam voltando para casa, em um fim de tarde chuvoso, numa das avenidas congestionadas de nossa cidade. Ele mantinha os olhos fixos no trânsito, as mãos crispadas no volante. No banco do passageiro, sua esposa olhava a cidade passar pela janela, sem pressa, conferindo os já comuns buracos e poças.

De repente, um carro preto cortou pela direita e avançou feito um foguete, quase raspando no retrovisor.

— Mas que cara louco! — resmungou o Machista normal, apertando o volante.

A esposa sorriu de leve.

— Quem sabe ele está levando alguém para o hospital?

Machista bufou.

— Hospital? Duvido. Mais fácil estar atrasado para tomar uma com os amigos.

A esposa não respondeu. Apenas voltou a olhar pela janela.

Mais à frente, um carro andava devagar, quase se arrastando. Machista fechou a cara.

— Ah, não... Agora um tartaruga na pista. É demais pra mim! Aaaanda, meu filho!

A esposa deu um meio riso.

— Quem sabe é um senhorzinho dirigindo com cuidado? Ou talvez ele esteja levando um bolo de casamento e tenha medo de estragar a decoração.

Machista revirou os olhos.

O trânsito avançou um pouco, e logo à frente, um motociclista ziguezagueava entre os carros, costurando como se estivesse fugindo de algo invisível. Machista socou a buzina.

— Quer se matar, desgraçado?!

A esposa, imperturbável:

— Quem sabe ele está desesperado porque pode perder o emprego se atrasar de novo?

Seguiram em silêncio por mais alguns minutos, até que um carro freou bruscamente na frente deles.

Machista bateu o pé no freio, o coração na boca.

— Tá maluco, cara?!

A esposa olhou ao redor.

— Quem sabe ele parou para não atropelar um cachorro?

A última gota de paciência se esgotou quando um carro parou em fila dupla, bem no meio da via, obrigando todos a desviar. Machista bateu a mão no painel.

— Isso não tem desculpa! Falta de consideração total!

A esposa olhou para a calçada.

— Quem sabe ele só está ajudando alguém a descer?

Machista seguiu o olhar dela e viu uma senhora de cabelos brancos segurando o braço do motorista, descendo devagar. Ele soltou o ar lentamente.

O silêncio se instalou dentro do carro. Ele relaxou os ombros. Ela sorriu.

— Viu? Às vezes, o “quem sabe” muda tudo.

Ele sorriu de volta, mas, dessa vez, com um olhar diferente.

O carro avançou alguns metros. A chuva seguia fina, o trânsito continuava carregado, as buzinas ainda soavam ao redor. Mas algo dentro dele parecia ter se ajeitado, como se a cidade estivesse um pouco menos caótica. Ela continuou.

— Todos vivenciamos dramas, dores, segredos e medos que ninguém mais sabe.

Ele suspirou. Ela continuou falando.

— É só a gente tentar enxergar o mundo com mais compaixão, né? Quem sabe, se a gente fosse mais tolerante — no trânsito, no supermercado, no trabalho, em casa — tudo não ficaria um pouco mais leve?

Ele a olhou com a mesma admiração de quando a conheceu. Sabia que ainda não conseguiria jogar o jogo do "Quem Sabe" todos os dias. Mas, pelo menos naquele momento, valia a pena tentar.

— Quem sabe seja por isso que te amo, disse, apertando-lhe a mão.

Ela sorriu de volta. O trânsito continuava o mesmo. Mas, de repente, a vida se tornou mais leve, com os pingos da chuva leve lavando suas almas e aquecendo os corações.

Foto do Danilo Fontenelle

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