
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Toda manhã, Clara acorda antes do sol. Não por escolha — por necessidade. É como se o mundo já estivesse correndo quando ela abre os olhos. Há o choro leve do Lucas, que nunca se encaixou direito nas rotinas do dia. Ele acorda como se viesse de um sonho incompleto, e Clara já aprendeu a ler nos olhos do filho aquilo que não cabe nas palavras.
Lucas hoje tem seis anos. E um diagnóstico que veio sem manual, sem mapa, sem tempo pra respirar. Síndrome de Down, ou Trissomia do 21 (T21), disse a médica, com a voz de quem está apenas passando uma informação. Clara ouviu como quem recebe uma carta de outro planeta. Por fora, ela sorriu. Por dentro, caiu de joelhos. Desde então, constrói seus dias sobre um chão que balança.
As tarefas são sempre mais do que cabem nas horas. Preparar as texturas certas da comida, prever o barulho da escola, interpretar cada gesto como se fosse código morse. Enquanto outras mães trocam receitas de bolo, ela decifra os silêncios do filho com a precisão de uma cientista e o amor de quem faria isso mil vezes de novo. Mas o que ninguém vê — ou quase ninguém — é o peso invisível que ela carrega.
Tem dias em que Clara sente que o mundo inteiro repousa sobre seus ombros. E ainda assim, ela levanta, penteia o cabelo com pressa, ajeita a mochila do Lucas, engole um café pela metade. O amor a move, claro. Mas o cansaço também é real. A solidão também é real.
Foi num desses dias, num dos mais duros, que ela conheceu Mariana. Estavam na recepção do terapeuta. Mariana tinha uma filha com atraso global do desenvolvimento, e um sorriso de quem já tinha chorado o oceano. Elas trocaram poucas palavras — e, mesmo assim, foi como encontrar abrigo.
A rede começou ali: com um café depois da terapia, um áudio no fim do dia, um “eu também já me senti assim”. Pequenos gestos, quase imperceptíveis. Mas eram nós firmes naquele fio invisível que as sustenta.
Porque a verdade é essa: ninguém segura o céu sozinho.
As mães de crianças atípicas são mulheres que habitam um país paralelo — onde os mapas são outros, o tempo é outro, e os heróis não usam capa, mas carregam mochilas com fraldas, brinquedos sensoriais e laudos médicos. E tudo isso, enquanto tentam não desaparecer de si mesmas. Às vezes, quando Lucas dorme — finalmente — Clara se senta no sofá, luz apagada, e respira. Não pensa em muito. Só deixa o silêncio existir.
É nesse momento que lembra das outras. Das que também acordam antes do sol. Das que também carregam o mundo com doçura e exaustão. Às vezes com culpa, às vezes com raiva, quase sempre com amor. Lembra de Mariana, das conversas trocadas no meio do caos, dos conselhos que não vinham de cima, mas do lado. E pensa: talvez a rede de apoio não seja algo grande, barulhento, perfeito.
Talvez seja só isso: um fio de afeto entre duas mães que se enxergam no escuro e se tornam laços de apoio. E isso, às vezes, é o suficiente para continuar.
Clara pensou em como tudo começara com um diagnóstico, mas o que floresceu não foi apenas dor. Foi essa teia de mãos estendidas, olhares que seguram, palavras que sustentam. Cada uma trazia sua história, sua luta. Mas juntas, construíram abrigo. Porque todos nós, em algum momento, somos puxados pro fundo. Pela tristeza, pelo medo, pela dúvida. Todos nós precisamos de alguém que diga: “Eu tô aqui. Você não precisa passar por isso sozinho". A rede de apoio não é luxo. É sobrevivência.
Ela não resolve tudo — mas impede que a gente afunde sozinho. Não importa se é uma rede feita de amigas, de família, de vizinhos, de profissionais, de gente que a gente nem conhece direito mas que topa segurar a ponta do fio por um instante. O que importa é saber: ninguém nasceu pra aguentar o mundo sem trégua. E, principalmente, nenhuma mãe — atípica ou não — deveria ter que ser heroína todos os dias. O verdadeiro milagre não é voar sozinha. É encontrar, na queda, uma rede formada de braços e abraços.
A soma da Literatura, das histórias cotidianas e a paixão pela escrita. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.