
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF), na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 347, reconheceu a existência de um "estado de coisas inconstitucional" no sistema prisional brasileiro. Essa expressão designa uma situação de violação massiva e sistemática de direitos fundamentais, que compromete a dignidade dos presos e a efetividade das normas constitucionais, principalmente com relação a superlotação, falta de higiene, alimentação inadequada, ausência de acesso à saúde, educação e trabalho.
Em 4 de outubro de 2023, o STF determinou uma série de medidas para sua superação, dentre as quais a elaboração de planos de Intervenção que devem abordar a criação de vagas adequadas e melhoria das condições das existentes, além da implementação das audiências de custódia, separação entre presos provisórios daqueles com condenação definitiva e criação de novas varas de execução penal, visando maior controle e efetividade nas execuções penais.
Não há como negar que, uma vez submetido ao poder estatal, principalmente com o cerceamento da liberdade, todo indivíduo tem direito a ter sua dignidade garantida, cumprindo sua pena de acordo com as normas constitucionais. Nesse esforço por garantir uma pena justa e humana, atuam órgãos estatais, organizações não governamentais, grupos de familiares, movimentos sociais e coletivos comprometidos com a ressocialização dos presos.
Tais penas, por óbvio, são passageiras e, de acordo com o nosso sistema prisional atual, dificilmente uma pessoa permanece a integralidade da pena em regime fechado, havendo a previsão de progressão para os regimes semiaberto e aberto, além de diversas medidas cautelares penais diversas da prisão, acordos de não persecução penal, suspensão condicional do processo, suspensão condicional da pena, detração penal etc.
No entanto, ao voltarmos o olhar apenas para dentro dos muros das prisões, corremos o risco de esquecer uma outra realidade igualmente brutal — porém invisível: as constantes penas eternas, injustas e inconstitucionais impostas sem julgamento. São as penas das vítimas dos crimes violentos contra a vida, atingindo reflexamente seus filhos, familiares e dependentes. Esses crimes, todos os dias, criam uma legião de viúvas e órfãos — desamparados no corpo, na mente e no sustento — em sua maioria, pessoas negras e pobres, numa retroalimentação cruel de um estado de coisas inconstitucional.
As viúvas e seus filhos são condenados a penas que nunca acabam, e se veem, literalmente da noite para o dia, lançados nas tormentas da miséria da vida, sem a renda auferida pelo provedor da família e muitas vezes tendo que mudar de casa devido a ameaças de facções. Seus filhos saem das escolas para mendigarem nas esquinas, sem falar nos traumas e doenças psicológicas consequentes, e, na perversidade paradoxal da vida, veem se aproximar o alcoolismo, vícios em drogas, prostituição e criminalidade.
Creio que não seria difícil a criação, já na fase dos inquéritos policiais, de um cadastro estadual de vítimas de crimes violentos contra a vida, onde a vítima, seus cônjuges, filhos e dependentes seriam registrados para receberem o acolhimento e amparo que lhes faltou um dia. Assim, quem sabe, tais pessoas já sofridas pudessem ser beneficiadas com a preferência nos aluguéis sociais, matrículas de filhos em caso de mudança de escolas, além de inclusão em programas públicos de apoio ao empreendedorismo, incluindo vagas em cursos profissionalizantes e financiamentos.
Ainda em termos de renda, seria possível o estabelecimento de um percentual de contratação de pessoas vítimas de crimes violentos contra a vida nos contratos públicos de obras e serviços do Governo Estadual e Municipal, ou, talvez se pensasse também em isentá-las de taxas de concursos de maneira que as pessoas consigam se reerguer economicamente.
De igual maneira, não teria qualquer despesa pública a mera preferência de vítimas de crimes violentos contra a vida, seus filhos e/ou dependentes para obtenção de licenças e autorizações para o exercício de comércio fixo ou ambulante. No mesmo rumo, não há nada de complexo em destinar um percentual dos bens e valores apreendidos nos processos criminais para a criação de um fundo para as vítimas de crimes violentos como maneira de financiamento de ações sociais destinadas a tal público esquecido.
As vítimas — essas pessoas que não pedem vingança. Pedem justiça em sua forma mais humana: o cuidado. Não se trata de inverter prioridades, mas de incluí-las. Que o Estado que prende, também ampare. Que o país que discute o direito à dignidade do preso, finalmente reconheça a dignidade dos que todos os dias acordam tentando sobreviver à ausência, ao medo e à pobreza. Talvez, um dia, a pena justa não seja apenas a do réu, mas também a que o Estado deve à vítima. Não como castigo, mas como reparo. Não como favor, mas como direito.
Porque enquanto uma mãe chora em silêncio no corredor de uma escola onde não pôde matricular o filho, enquanto um menino troca os cadernos pela lata no semáforo, ou uma viúva sofre calada o terror de deixar a própria casa por medo, o que há é uma Constituição incompleta — e um Brasil ainda por construir. Mas há tempo. Há sempre tempo para transformar dor em política pública. Basta que, enfim, olhemos para todos os lados.
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