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Zona de conforto e zona de extinção
Foto de Demitri Túlio
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Zona de conforto e zona de extinção

Um pós-abolição na zona de extinção de Fortaleza – nos bairros miseráveis – é sinal de homicídios. E ainda se fala besteira sobre essa tal Data Magna
Tipo Crônica
2403demitri.jpg (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2403demitri.jpg

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Parece que o povo da periferia vai invadir a zona de conforto de Fortaleza. E não era sem tempo. O pau está cantando lá e se esgarça há muitos prefeitos, governadores, presidentes, deputados, senadores e vereadores. Vai dar ruim, também, para o lado dos privilegiados.

Por zona de conforto, esquadrinhe-se a parte especial do mapa que pega da Dom Manoel, ali pelo Banco Central, se estende por toda a velha Aldeota, Praia de Iracema, Beira-Mar, Meireles, Varjota, Cocó, Guararapes, Dionísio Torres, desce pela Pontes Vieira em direção ao Benfica, retoma pela Domingos Olímpio e volta à avenida Dom Manoel pra banda "nobre".

Esse desenho é um mar de rosas em Fortaleza? Não. Mas é o melhor torrão quando se fala de serviços e há nele uma Cidade menos escrota que os territórios inchados na periferia da capital do Ceará.

 

Esperar pelo Sanear, ele vai passar", deixar de feder o quintal, as coisas estourando na hora do almoço 

 

É sim. Minha mãe, apesar do Alzheimer e os vãos, ainda sonha com o "absurdo" direito ao Sanear na soleira da casa dela, na Maraponga. Foi, talvez, um dos grandes desejos não realizados da vida dela.

"Esperar pelo Sanear, ele vai passar", deixar de feder o quintal, as coisas estourando na hora do almoço e os netos serem proibidos de andar descalço! Os filhos não tiveram esse "favor" do poder público.

Falo da Maraponga, mas a Maraponga não é dos piores territórios mazelados. É um céu em relação há centenas de ocupações urbanas precárias.

 

O título vem no chicote: "Mais um jovem morto no José Euclides, continua a onda de violência

 

Deixa-me passar um recado que ando lendo e escutando. Tem uma "civilização" excluída que está perdendo a paciência com o açoite histórico de séculos. Do pós-abolição para cá, quem saiu sem nada das senzalas virou doméstica, jardineiro, rapariga, zelador, vigia, babá, soldado... mas tá foda viver na zona de extermínio!

Olhem o depoimento dramático que segue aqui, nesta crônica enjambrada ou texto de opinião (besteira das caixinhas literárias e jornalísticas). É um comunicado à imprensa do Ceará Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto de Fortaleza (MTST), da última quinta-feira, 22/3/2024.

O título vem no chicote: "Mais um jovem morto no José Euclides, continua a onda de violência. Quantos ainda irão morrer?".

 

 Está mais que provado que não é falta de polícia, mas falta de uma política de segurança pública

 

E lê-se assim... "Hoje, dia 21/3, mais uma "morte no cenário de normalidade" do Residencial José Euclides com uma vítima tombando na quadra 9B, às 19 horas. A comunidade vive um momento de medo e insegurança crescentes com falta de respostas das autoridades".

Depois, vem a palavra "apelo" e mais indignação. "Está mais que provado que não é falta de polícia, mas falta de uma política de segurança pública. Pedimos às autoridades medidas urgentes para trazer paz à comunidade. Os moradores não podem mais viver nesse clima de violência constante".

Em outros manifestos públicos, o MTST pergunta o seguinte: por que só se matam jovens, a maioria de cor negra, nas zonas das quebradas em Fortaleza?

E, vejam, os exilados sociais da periferia não estão desejando que os filhos brancos das famílias de classe média e ricos - habitantes da zona de conforto de Fortaleza - sejam assassinados. Não e de jeito nenhum.

 

A zona de conforto em Fortaleza e os condomínios de luxo dela e da Região Metropolitana não choraram com nenhuma chacina

 

Mas é estranho e epidêmico 201 homicídios, apenas nos primeiros meses deste ano em Fortaleza, e a maior parte das execuções mapeada entre favelados, pretos e pardos. Os assassinatos "paisagens" na zona de extinção da Cidade Solar. Foram 744 no Ceará todo.

A zona de conforto em Fortaleza e os condomínios de luxo dela e da Região Metropolitana não choraram com nenhuma chacina, com nenhuma tragédia faccionada, com nenhuma violência policial e nenhuma "bala" de algum homicídio rotineiro.

No Residencial José Euclides o pau está cantando, mais ainda, desde o último dia 17/3... e, também, em outras zonas desconfortáveis de Fortaleza.

 

E esse povo se transformou em que no dia 25 de março de 1884 e até hoje?

 

Quem está sendo limado é pobre. Quem é matável é favelado. Quem vive na corda bamba, seguindo as regras dos diachos das facções, é gente sem direito aos governos. Trabalhadores, ser vivo desempregado e os classificados como "inúteis" no pós-abolição.

Feriado de Data Magna, 25/3/1884? É tão aviltante, tão sem noção, tão história mal contada de uma abolição falaciosa...

Como instiga a professora Vera Rodrigues, antropóloga negra da Unilab: E esse povo se transformou em que no dia 25 de março de 1884 e até hoje? 

Foto do Demitri Túlio

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