Autor de 'Carcará', João do Vale fez história como a voz do povo nordestino
Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM
A turnê que estreia em agosto unindo Caetano Veloso e Maria Bethânia é uma boa oportunidade de tirar do esquecimento um compositor que está presente na gênese dessa dupla. João Batista do Vale é autor de "Carcará", uma das canções do espetáculo "Opinião". A música foi o primeiro sucesso de Bethânia, que veio da Bahia - acompanhada do irmão - para substituir Nara Leão, que interpretava a moça politizada da cidade na peça dirigida por Augusto Boal. O elenco contava ainda com Zé Keti, como o malandro carioca, e João do Vale, interpretando o imigrante nordestino.
Interpretar não é bem o caso. João nasceu num lugarejo do interior maranhense, criado por descendentes de escravos, chamado Largo da Onça, próximo a Pedreiras. Começou a estudar já com cerca de 10 anos, mas logo parou porque teve que dar sua vaga para o filho de um funcionário público que estava se estabelecendo na região. Revoltado, ele costumava jogar pedras na escola e não voltou a estudar. Na contramão desse infortúnio, o avô certa vez leu sua mão e previu: "esse menino é diferente, vai ser rico".
Desde muito pequeno, já era ligado à música, gostava de dançar o tambor de crioula e se metia a fazer jingles para as lojas de Pedreiras. Mas a necessidade exigia mais e ele, quinto de oito irmãos, vendia bolos para ajudar no orçamento da casa sustentada pelos pais agricultores. Aos 13, a família foi para São Luiz e ele foi vender laranjas. E daí começa o périplo. Aos 14, fugiu de casa e foi para Teresina, onde trabalhou como ajudante de caminhão. Depois Sergipe, Fortaleza, Salvador e, enfim, Rio de Janeiro.
Na Cidade Maravilhosa, o neto de escravo vindo de Angola foi trabalhar de pedreiro. Entre uma obra e outra, circulava pelas rádios mostrando composições que falavam da dura vida pobre e sertaneja. Mesmo quando havia beleza, havia dureza. João do Vale é um dos mais fiéis retratistas desse quadro imutável dos interiores brasileiros. Outro que cumpre bem esse papel é Luiz Gonzaga. João quis conhecê-lo logo que chegou ao Sudeste, mas o Rei do Baião o ignorou. Curiosamente, Tom Jobim, então um jovem pianista de boate, gostou dos xotes, forrós e baiões de João.
À medida que sua música se espalhava, convites surgiam. João cantou no lendário bar Zicartola, cuidado por Cartola e sua esposa Zica, e veio o convite para o show "Opinião", sucesso de público e crítica e uma cutucada na onça da ditadura. João teve problemas e precisou se esconder no lugar mais improvável que seu bolso permitia: Pedreiras. Não bastasse o sucesso de "Carcará" na voz de Bethânia, ele ainda fez trilha para cinema, voltou ao teatro (dirigido por Bibi Ferreira) e ficou amigo de Luiz Vieira, com quem compôs lindezas como "A voz do povo" e "Na asa do vento". Foi gravado por Ivan Lins, Marinês, Dolores Duran e Tim Maia, que lançou "Matuto Transviado" com o nome de "Coroné Antônio Bento". Viajou para os EUA (onde deu aula sobre expressões sertanejas), Cuba e Angola, onde chegou, ajoelhou e chorou.
Outro dos que se encantou pela obra de João do Vale foi Chico Buarque, que produziu seu disco de 1981, época em que o compositor de "A ema gemeu" andava em baixa popularidade. No álbum, João cantava ao lado de nomes como Clara Nunes, Amelinha, Fagner e Nara Leão. Em 1995, Chico voltaria a esse repertório produzindo o tributo "João Batista do Vale" com 16 vozes - Alcione, Bethânia, Ednardo, Paulinho da Viola... - cantando seu amigo que viria a morrer no ano seguinte.
Ter alguns sucessos populares e proximidade com uma turma da pesada não garantiu segurança à carreira de João. Ele tornou-se alcoólatra e sofreu com as consequências de um derrame cerebral. O avô acertou parcialmente sua previsão. João do Vale nasceu igual a muitos e registrou em música a vida dos seus semelhantes. Também não ficou rico, mas legou à cultura brasileira uma riqueza pronta para ser descoberta.
A lista de Juruviara
Valdemar Junior - É meu tio. Desde que eu era criança, ele tocava as músicas dele para os sobrinhos e a gente cantava tudo. Entre elas, "Amor de cowboy".
Fausto Nilo e Geraldo Azevedo - Eu conheci as músicas do Fausto não com ele, mas com o Geraldo Azevedo. São compositores de canções que tocavam no rádio, que tocavam na minha casa através das fitas, dos discos que os meus pais escutavam.
Alceu Valença - Um compositor que me inspira muito também. Muito pela sua popularidade. São referências de inspiração pra mim. Alceu sempre tocava no rádio, aparecia os shows dele na televisão e era uma coisa que me encantava muito. Sempre foi.
Fagner - Para mim, é uma referência de música brasileira. Foi o primeiro cantor que eu vi, cearense, arrastando multidões. As pessoas de todo o Brasil cantando, por onde eu vou. As pessoas que trabalham com música têm o Fagner como referência. Ele embalou muito a minha infância e adolescência, tanto através dos discos da minha casa quanto nas rádios. Eu sempre ouvia muito falar dele e via muito ele participando de grandes eventos com outros nomes da música brasileira. Então, Fagner é uma referência de alcance de público, da música dele ter conseguido chegar e abranger boa parte do Brasil. Por isso o Fagner, para mim, é a grande referência de cantor cearense.
Notas musicais
Relicário
O quinto lançamento da Série Relicário resgata o show realizado por dona Ivone Lara em 1999, no Sesc Vila Mariana. Inspirado no disco "Bodas de Ouro" (1997), o álbum virtual traz 15 faixas, entre elas "Axé de Ianga" e "Resignação". Disponível na plataforma Sesc Digital.
Aniversário
O cantor e compositor cearense Pedro Frota faz show no sábado, 27, comemorando os 79 anos de Ednardo - completados em 17 de abril. Será no Cantinho do Frango, às 19 horas. Pedro já fez esse repertório em Paracuru, no projeto Praia da Música.
Ao vivo
Djavan lançou nas plataformas digitais o registro de sua mais recente turnê. "D Ao Vivo Maceió" leva o músico de volta à sua terra natal com um repertório já conhecido do público. Com "Curumim" e "Samurai", o show passou por Fortaleza em março.
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