Marco do rock psicodélico, Ave Sangria celebra a vida com show em Fortaleza
Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM
A banda Ave Sangria tem uma história muito particular no rock nacional. Nascido em Recife, nos anos 1960, o grupo formado por Marco Polo (voz), Ivinho (guitarra), Paulo Raphael (guitarra), Almir de Oliveira (baixo), Israel Semente Proibida (bateria) e Agrício Noya (percussão) fez história com um som que misturava influências nordestinas com guitarras ferinas e vocais libidinosos.
O disco de 1974 reunia esses elementos com performances que eram verdadeiras afrontas à moral dos tempos de ditadura. Acabaram sofrendo censura, sendo presos e esperando mais de 40 anos para um novo trabalho. Para contar essa história, Marco Polo e Almir chegam a Fortaleza neste sábado, 29, para único show no Jamrock, no festival Psicodelia. Por email, o vocalista do Ave Sangria fala sobre o novo momento da banda e o retorno a Fortaleza.
O POVO - Vocês estiveram em Fortaleza em 2018, para um show no Dragão do Mar. O que lembram dessa apresentação e qual a expectativa para este retorno?
Marco Polo - Lembro que tivemos uma receptividade entusiástica do público cearense, o que nos deixa instigados para fazer agora um show melhor ainda.
OP - Vocês vêm participar de um evento chamado Festival Psicodelia e esse termo "psicodelia" é sempre associado a vocês. Vocês se consideram uma banda psicodélica?
Marco Polo - Acredito que a música ou a arte psicodélica, tem a ver com uma visão lisérgica do mundo e da vida, o que implica numa profusão de cores, e, no caso da música, intenso experimentalismo nas letras e nos sons. Dentro desses parâmetros, somos sim uma banda de rock psicodélico. Com um detalhe: rock psicodélico nordestino.
OP - Entre a vinda de vocês em 2018 e o retorno este ano, o mundo atravessou uma pandemia que mexeu com a vida de todos. Como foi esse período para o Ave Sangria?
Marco Polo - Cuidamos da sanidade física e mental, nossa e dos nossos. Assim conseguimos atravessar essa tempestade sãos e salvos. Para mim, particularmente, foi uma época de muita leitura e criatividade. Fiz diversas parcerias on line, duas das quais me orgulho particularmente: com Chico César e Zeca Baleiro. Parcerias que devem estar no nosso próximo disco.
OP - Durante esse período, a banda perdeu o guitarrista Paulo Rafael. Queria que você falasse sobre a importância dele para o som da banda e para a música brasileira de um modo geral.
Marco Polo - Certa vez, Paulinho ia passando e um fã sussurrou no ouvido dele: "Monstro"! Ele foi isso, um monstro da guitarra no seu trabalho solo, no seu trabalho com Alceu, e também como arranjador e produtor. No Ave Sangria, sempre foi um dos pilares da nossa sonoridade, ocupando com louvor o vácuo deixado pela morte de Ivinho, ao mesmo tempo que impunha sua personalidade. Em resumo: um Monstro.
OP - Falando em Paulo Rafael, outro músico que fez história a partir do Ave Sangria é o Ivson Wanderley. Para quem nunca ouviu falar nele, como vocês apresentariam o Ivinho e o som do Ivinho?
Marco Polo - Ivinho foi simplesmente um dos maiores guitarristas do Brasil de todos os tempos. Um gênio. E olha que eu sou muito avaro para usar essa classificação. É uma pena que ele ainda não receba o reconhecimento que merece.
OP - Em 2023, o Ave Sangria tornou-se patrimônio imaterial do Recife. O que esse reconhecimento vindo do poder público representa para vocês?
Marco Polo - Representa isso mesmo, um reconhecimento. Para uma banda que foi perseguida pela ditadura militar, tendo músicas e disco censurados, com seus integrantes presos por usarem cabelo grande e roupas coloridas, é uma prova de que a sociedade concorda, finalmente, que estava errada e nós estávamos e estamos certos.
OP - Boa parte da mítica em torno do Ave Sangria vem do disco que vocês lançaram em 1974. Na época desse álbum, o que vocês estavam ouvindo?
Marco Polo - São influências diversas e só posso falar por mim. O que estava ouvindo na época eram os Beatles, os Stones, o Led Zeppelin e Jimi Hendrix. E quem sempre ouvi e me influenciou foi Noel Rosa e Jackson do Pandeiro.
OP - Naquela época, vários artistas do Nordeste estavam surgindo com trabalhos que misturavam rock com sons regionais. Inclusive no Ceará, com nomes como Fagner, Ednardo e Belchior. Vocês percebem alguma proximidade no som que essa turma fazia com o que vocês faziam?
Marco Polo - Sim, claro. Havia uma integração. Pirei quando ouvi "Pavão Misterioso", do Ednardo. Fiz amizade com Belchior no Rio e, nos anos 1980, abri show para ele numa turnê nacional pelo Projeto Puxinguinha. Admiro demais o trabalho de Fagner. Somos todos irmãos sonoros. Sempre fomos.
OP - Existe uma geração que hoje se interessa por álbuns lançados nos anos 1970 e 80, incluindo alguns que não tiveram o devido reconhecimento à época. O que você acha desse movimento de volta do LP e que dá uma "nova chance" a discos que se tornaram raros? Há 20 ou 25 anos, vocês imaginavam que estariam voltando a tocar esse repertório juntos, gravando juntos, com novos fãs?
Marco Polo - Esse ciclo reafirma o conceito do eterno retorno, de Nietzsche. Tudo são ciclos. O vinil, morto e enterrado, está de volta. Esse é apenas um exemplo. Quanto ao redescobrimento do que foi produzido nos anos 1970, é apenas uma prova de que o que a gente estava fazendo, sem nenhuma pretensão, mas com todo o cuidado, eram coisas de qualidade, mas além da capacidade mediana da maioria das pessoas daquele tempo.
OP -O primeiro disco de vocês é de 1974, quando o Brasil vivia em uma ditadura militar. O segundo disco só veio em 2019, quando o presidente do País, mesmo tendo sido eleito democraticamente, exaltava o período militar. Qual a leitura que vocês fazem do Brasil a partir dessa nossa relação com o passado militar?
Marco Polo - Foi uma grande ironia, não? Hoje, eu quase chego a pensar que a Ave Sangria é uma banda destinada a cantar palavras necessárias em tempos altamente desnecessários.
OP -Um dos primeiros atos dos governos com tendências ditatoriais é atacar a cultura. O disco de 1974 do Ave Sangria foi censurado, principalmente por causa de "Seu Waldir". Por que a arte e a cultura dão medo a algumas pessoas?
Marco Polo - Boa pergunta. As pessoas seguem os "messias" salvadores da pátria porque têm medo de tomar decisões. É mais cômodo delegar as decisões para o "líder". A cultura leva as pessoas a pensarem por si mesmas e tomarem decisões a partir de sua consciência. A arte provoca, questiona, desestabiliza as certezas eternas. Tudo isso assusta a alma medíocre.
OP - "Seu Waldir", inclusive, foi gravada pelo Ney Matogrosso anos depois. O que vocês acharam dessa gravação dele?
Marco Polo - A interpretação de Ney é deliciosa. Assisti ele cantando no palco. A plateia delirava.
OP - Como foi para vocês, depois de tantos anos, voltar a gravar um disco juntos?
Marco Polo - Vou responder essas duas perguntas com uma resposta. O que nos levou a gravar "Vendavais" foi a necessidade de dar continuidade ao nosso trabalho. Gravamos o disco como se o estivéssemos fazendo no ano seguinte ao do lançamento do primeiro. Daí a necessidade de resgatarmos músicas compostas na época e que, para nossa surpresa, continuavam atuais. Quanto ao clima de gravação foi de orgasmo coletivo.
O POVO - Vocês seguem compondo canções novas?
Marco Polo - E sim, continuamos compondo. Nosso próximo disco será todo de músicas novas.
O POVO - O Ave Sangria que chega a Fortaleza é formado também por jovens músicos que se influenciaram pelo som da banda. Quem são eles e de que forma eles contribuíram para o som que a banda apresenta agora?
Marco Polo - Os novos componentes da banda são Juliano Holanda (baixo), Breno Lira (guitarra), Junior do Jarro (bateria) e Gilu Amaral (percussão). Cada um deles tem seu trabalho autoral, mas quando tocamos juntos somos todos Ave Sangria. A juventude deles com a nossa experiência dá um caldo psicodélico-energético. Vá ver o show. E prepare-se que seu coração vai sangrar!
Festival Psicodelia
Quando: sábado, 29, às 19 horas
Onde: Jamrock (Av. dos Tabajaras, 402 - Praia de Iracema)
Quanto: R$120. À venda no Covil Rock'n Bar (Benfica), Free Lancer Discos (Centro), Maniacs (Conj. Ceará) e no Bilheto
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