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De Minas à Bahia, dois olhares sobre o mesmo Brasil
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Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM

Marcos Sampaio arte e cultura

De Minas à Bahia, dois olhares sobre o mesmo Brasil

Revista americana Paste elegeu os 300 melhores discos da história, incluindo dois brasileiros. Lançados em 1972, confira como eles representam, de forma diferente, o mesmo país
Clube da Esquina dando nome também a uma geração de artistas mineiros surgidos nos anos 1970 (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Clube da Esquina dando nome também a uma geração de artistas mineiros surgidos nos anos 1970

Clube da Esquina. Para o crítico Matt Mitchell, a obra icônica da turma mineira é "retumbante", "única", "com guitarras escaldantes" e influências que vão "de Beatles a Chopin". Presença recorrente em diferentes listas de melhores álbuns, o álbum duplo lançado em 1972 - que ganharia uma continuação seis anos depois - ocupa o nono lugar da lista da Paste.

A história do álbum já é bem conhecida: Milton Nascimento, carioca de nascença e mineiro por opção, vivia na casa da família Borges, em Belo Horizonte. Ele já havia gravado duas composições do amigo Lô Borges, quando o convidou para dividirem um disco inteiro. Lô mal tinha 20 anos, era fã de Beatles e vivia na esquina de casa tocando violão. Milton, 10 anos mais velho, já havia vencido um festival, gravado um disco nos EUA e tinha Elis Regina e Agostinho dos Santos entre seus intérpretes.

O passo seguinte foi reunir o Clube. Beto Guedes, Nelson Angelo, Toninho Horta, Robertinho Silva, Tavito, Wagner Tiso e Gonzaguinha foram alguns dos presentes. Um tempo antes, Milton viu Alaíde Costa cantando na TV o samba "Me Deixa Em Paz" em uma versão arrastada e melancólica, ao contrário do original cantado de forma festiva. Impressionado, ele convidou a carioca para o disco também.

Além da força do coletivo, a capa do "Clube da Esquina" também se tornou icônica. Um Brasil ingênuo, interiorano, sorridente e tenso, miscigenado representado numa foto que o pernambucano Cafi fez de dois garotos sentados num barranco de Nova Friburgo (RJ). Tonho e Cacau ficaram famosos sem saber e depois abriram um processo por uso indevido de imagem, mas perderam sob justificativa de que a acusação havia prescrito.

Mas nada é mais forte no disco do que a mistura de samba, bossa nova, música sacra e erudita, jazz, rock... O ritmo de "Cravo e Canela" e os agudos de "Os Povos"; a urgência de "Nada Será Como Antes" e a docilidade de "O Trem Azul"; o arranjo dramático de "Um Gosto de Sol" e o pop psicodélico de "Trem de Doido". Com cada detalhe medido pelos maestros Lindolfo Gaya (direção musical), Wagner Tiso (orquestração), Eumir Deodato (orquestração) e Paulo Moura (regência), "Clube da Esquina" é uma obra reconhecida pela riqueza sonora, pela delicadeza dos arranjos, pela beleza dos detalhes. Um disco que foi feito para ser descoberto aos poucos.

 

Capa do disco 'Acabou Chorare', dos Novos Baianos
Capa do disco 'Acabou Chorare', dos Novos Baianos

Acabou Chorare

Na 51ª posição da Paste Magazine, o segundo disco dos Novos Baianos é quase um retrato oposto do que o Brasil era naquele momento. Era governo Médici, quando a ditadura já havia instalado um clima de terror para qualquer pessoa que ousasse pensar ou agir contra o governo.

Na contramão desse tempo nublado, um grupo de cabeludos maconheiros (com orgulho!) abriu o coração para as brasilidades. O que entre os mineiros era medido e pensado, entre os baianos era puro feeling e espontaneidade. O que no "Clube da Esquina" é sagrado e etéreo, em "Acabou Chorare" é profano e festivo.

A força do coletivo também é uma marca aqui. Sem muitos arrodeios, os arranjos de Pepeu Gomes e Moraes Moreira misturam pandeiro, cavaquinho e agogô com guitarra, baixo elétrico e bateria numa amálgama tão original que segue fazendo escola há mais de 50 anos. Nada representa mais esse coletivo do que a capa original do LP: pratos, copos, talheres, restos de comida sobre uma mesa iluminada pelo sol. Um retrato da vida comunitária, uma pós-santa ceia hippie.

A história de "Acabou Chorare" também é famosa. A banda ainda buscava identidade quando João Gilberto lhes apresentou o samba de Assis Valente. Era o que faltava para libertar o Brasil que estava preso na cabeça dos Novos Baianos. Com letras surrealistas que retratavam o amor pelo futebol e o desapego a formalidades, contratos, relógios, fundaram um novo país através da música.

De Valente, escolheram "Brasil Pandeiro" para abrir o disco. Do samba, passam para "Preta Pretinha", que assim como "Bolero", de Maurice Ravel, ganha corpo e volume ao longo de muitos minutos. Tem "Tinindo Trincando" e "A menina dança", rocks com cara de escola de samba. Diferente de "Swing de Campo Grande" e "Besta é tu", mais tradicionais. Mas a obra-prima segue sendo "Mistério do Planeta", com letra filosófica sobre o passar do tempo.

Se a maturidade do canto de Milton é ouro do "Clube da Esquina", a ingenuidade da voz de Baby emociona pela delicadeza. Junto dela, o fraseado ágil de Moraes, a experiência de Paulinho Boca de Cantor, as influências de Jimi Hendrix, Jacob do Bandolim e Garrincha na guitarra de Pepeu Gomes e a cabeça tropicalista de Luiz Galvão. Na cozinha, Dadi, Jorginho, Baixinho, Bolacha e outros malucos que apareciam no pedaço. "É um álbum que não para de elogiar suas próprias partes móveis", disse o crítico Matt Mitchell, da Paste.

Foto do Marcos Sampaio

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