Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM
Foi ao longo da era dos festivais, quando a TV descobriu o potencial comunicacional que a música tinha com os telespectadores, que surgiu o termo MPB. Ali pelos anos 1960, compositores e intérpretes - até então ofícios bem separados - se engalfinhavam em batalhas nem sempre elegantes para descobrir quem levaria esse ou aquele prêmio. Nessa mesma época, outra batalha nasceu no Brasil: quem era pró e quem era contra a ditadura militar. Não havia meio termo ou muro para ficar em cima. E qualquer sinal de cortesia, por menor que fosse, aos militares era passivo de sumário cancelamento.
Foi nesse cenário de comunicação de massa embrionária, engajamento político, mercado musical insipiente e busca por novas linguagens sonoras que se forjou uma geração de artistas que puxou para si o sarrafo da qualidade. Cantar bem era cantar como Milton Nascimento ou Elis Regina. Compor bem era compor como Chico Buarque ou Caetano Veloso. Ritmo quem tem é Gilberto Gil e samba é com o Paulinho da Viola. A geração seguinte, a do rock dos anos 1980, respeitou esse legado, propôs parcerias e se aproveitou da chegada das grandes gravadoras internacionais, com orçamentos milionários, equipes de divulgação e metas a cumprir. O fator político ainda era forte para a turma de roqueiros. Como a ditadura já estava caindo de velha, era hora de hastear a bandeira das "diretas já".
Se nos 1960/70, qualidade e respeito do cantor valiam mais que vendas, nos 1980 já eram necessárias umas boas 100 mil cópias para garantir o contrato. Como quem vende eletrodomésticos, gravadoras passaram a selecionar artistas olhando para planilhas de custos. Demitiram as orquestras e substituíram por sintetizadores, que deixavam tudo mais barato, mais rápido e mais pasteurizado. Artista com cara de hippie fora de época ganhou banho de loja, implantou dente, trocou o figurino e saiu mais bonito na capa do LP. E se esse LP que não tivesse pelo menos um hit radiofônico nem ia para loja.
Se adaptar à lógica norte-americana do mercado fonográfico não era fácil para quem queria defender sua arte. Mas quem soube caminhar no fio dessa navalha virou estrela da MPB. As mesmas estrelas que hoje, pouco a pouco, vão se apagando. Rita Lee e Gal foram iluminar outros palcos. Milton se aposentou das turnês, o mesmo que anunciaram Gil e Caetano (este falou apenas das turnês internacionais). Chico Buarque, Jorge Benjor e Paulinho da Viola nem precisam anunciar nada, uma vez que reduziram muito a agenda nos últimos anos.
E é aí que muitos decretam "o fim da MPB" porque "não tem mais nada que preste". Para nossa sorte, o legado deixado por estes que hoje se aposentam e os que em breve farão o mesmo não vai morrer. E sim, tem muita gente fazendo música que presta. Mas, para encontra-los, é preciso saber como funciona o cenário atual. O mercado é todo fatiado em nichos muito bem organizados. A lógica do lucro pegou quem fazia música para a classe C, investiu na apresentação e hoje cantores de forró e sertanejo lotam estádios em shows milionários. Ou seja, foram eles que ganharam um banho de loja. Ainda sai mais barato que investir num compositor que tem ambições artísticas.
Há também outros nichos: pautas identitárias, os fenômenos das redes sociais, astros do passado que aprenderam a capitalizar a nostalgia, a suposta defesa da raiz (o samba não pode morrer!), os clones... Em algum lugar nessa salada, seguem os compositores que, por falta de nome melhor, o mercado chama de "nova MPB". Boa parte deles são filhos (por descendência ou admiração) da velha MPB, que nunca largou mão de ser um padrão de qualidade.
Um mais é sempre mais que dois
Em 2011, a cantora, baixista e compositora Esperanza Spalding se apresentou no palco Sunset do Rock in Rio, tendo como convidado Milton Nascimento. A admiração da norte-americana pelo carioca já vinha de décadas antes, tanto que já tinham gravado juntos num disco dela. Mas foi em 2022 que o filho de Milton propôs a ela um disco inteiro em parceria. Sem perder tempo, ela correu para escrever arranjos e ideias.
"Milton+Esperanza" chegou às plataformas e lojas de LP (importado) este mês com 16 faixas que abrem portas para diferentes universos sonoros. Arregimentando uma longa e respeitosa lista de convidados, o álbum é um novelo de jazz, música de conserto, MPB, experimentações, ambiências cinematográficas e surpresas como Paul Simon cantando em português a inédita "Um vento passou", que Milton fez pensando exatamente nesse dueto que celebra anos de amizade.
Produzido por Esperanza, o disco conta ainda com "Earth Song", alerta ecológico lançado por Michael Jackson no disco "History", que aqui ganha a voz de Dianne Reeves. Além dela, Tim Bernardes, Maria Gadu, Lianne la Havas, Orquestra de Ouro Preto vão acrescentando belezas a "Milton+Esperanza". O mestre Guinga também comparece cantando e tocando seu violão mágico em "Saci", composição sua com Paulo César Pinheiro.
Relembrando o Clube da Esquina e suas influências, Milton e Esperanza cantam lindamente uma versão de "A day in the life", dos Beatles, cabendo a ela as notas mais altas. Sim, Milton não tem mais aquela voz de antes que parecia ser afinada por um coro de anjos. Mas sua história justifica as limitações técnicas que ele mostra hoje. E essa história está presente nas versões de "Cais", "Morro Velho" e "Outubro".
"Milton+Esperanza" tem cara de trabalho feito para o mercado estrangeiro e já até ganhou uma versão ao vivo para o programa Tiny Desk, promovido pela rádio pública NPR, de Washington. Apesar de envolver dois ourives do som, o disco guarda uma espontaneidade que só quem tem certeza do que faz pode imprimir. Por isso, em tempos de audição cada vez mais fragmentadas e apressadas, vale parar e ouvir cada detalhe escondido nos arranjos, diálogos, risos de "Milton+Esperanza".
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