Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM
Alice David: "Vejo a análise como um palco. Se submeter à análise é fazer cena."
Não tem jeito, Belchior está no nosso imaginário. E olha ele aqui abrindo o período em que volto a escrever na Discografia, ocupando a página conduzida tão brilhantemente pelo Marcos Sampaio! A gente tem sempre uma frase guardada dentro daquela canção. Ele escreveu sobre tudo nessa vida. E na hora de dar título a um texto, é difícil resistir às suas referências.
A psicanálise está na ordem do dia (como não?), no mais amplo sentido que isso possa ter. Para quem está nessa galáxia, basta rodar a timeline das redes sociais. Teorias, cursos, recortes de falas certeiras e cortantes ao alcance da tecla do celular. Pudera, o mundo está precisando! Esta introdução é para apresentar duas artistas que escolheram seguir esse campo de estudo. Elas estão entre as mais talentosas cantoras da cena cearense - Alice e Raara. Além disso, donas de uma conversa sempre sagaz e interessante. Alice David e Raara Rodrigues são analistas que dividem arte e psicanálise, dois mundos que se atraem.
Alice lançou, este ano, o single "Tocar Minha Vida e Uma Canção Qualquer" (com produção musical e participação de Fernando Catatau) nas plataformas. E prepara seu álbum, "Análise Selvagem", que planeja desde sua passagem pelo Laboratório de Música da Escola Porto Iracema das Artes (2022), quando recebeu tutoria de sua ídola, Tulipa Ruiz, e pesquisou ao lado do músico e compositor Gabriel Vieira e de briar aguarrás. Ela vem espalhando seu canto singular e "letras-pedradas" por palcos de Fortaleza, Sobral (onde morou) e Itapipoca (onde reside). Eu costumo brincar dizendo que ela é a "nossa Tim Bernardes" (outro ídolo dela).
Raara vai aonde sua voz alcança. E isso significa o mundo. Em altos voos pelo jazz e MPB nas muitas das suas vertentes, como a canção de fossa, dor de cotovelo - aquela sofrência nossa de cada dia. Se Alice relê com bela desenvoltura uma música como "O que foi que você viu", de Chico Pio, Stelio Valle e Nertam Alencar, do álbum Massafeira (1980), Raara vai de "Ne me quittes pas", de Jacques Brel, ao repertório desesperado de Núbia Lafayette. Uma Maysa contemporânea para consolo dos corações aflitos. Alice também é compositora e ilustradora.
Com o show "Boemia Elegante", projeto que iniciou este ano, Raara oferece o "doce amargor" da própria Núbia, Nelson Gonçalves, Lupicínio Rodrigues, Cartola, Dalva de Oliveira e demais especialistas em destilar a dor no clube dos heartbreakers. O show aconteceu em outubro, com a lua em escorpião, no Flores Arte Bistrô, Praia de Iracema, na companhia das cordas infinitas de Ribamar Freire. Apresentando-se na noite de Fortaleza, seja na Virada do CCBNB, na Sublime, no Ideal, ou no Flores, Raara divide sua voz com o consultório. Ela iniciou sua carreira em 2013 cantando jazz nos bares e palcos.
Seu repertório traz influências de standards eternizados por Billie Holiday e Nina Simone, além de joias da Bossa Nova e da MPB. Raara também é graduada em Psicologia pela Unifor, faz formação na Escola Corpo Freudiano de Psicanálise e atua como psicanalista lacaniana em seu consultório particular. Alice é tutorada, em psicanálise, pela Novamente/UD-RJ e é integrante da PAGU Psicologia.
Viver a Divina Comédia Humana
-Por que a psicanálise?
Alice David - Para não ficar presa ao que parece ser a única saída. Para aprender a topar com o precário sem sair correndo, na aposta de que daí que pode advir a complexidade, a riqueza na vida de uma pessoa. Por sua relação inescapável com a arte — o que é engraçado, pois antes de entrar na análise eu ouvi alguns escritores e compositores dizendo que tinham medo de "perder a inspiração" caso iniciassem um processo analítico e isso me deixou supersticiosa por um tempo. Isto é uma besteira, aliás. A análise convida para a arte de uma maneira ampla. Arte como tudo o que há.
- O amor é uma coisa mais profunda que um encontro casual?
Alice - Um encontro casual pode ser mais profundo do que possamos imaginar. Aliás, o que há são encontros, entendo o dito amor como mais um encontro. Em nome do tal amor, podemos esquecer da potência de uma 'transa casual', não é infrequente. Estou querendo dizer que, na tentativa de manter os vínculos, podemos até destruir uma coisa que é bonita e empobrecer a singularidade dos envolvidos. Mais do que ser tomado como solução para a humanidade, o amor deve passar por uma repaginada. É delicado, mas importantíssimo. Há um analista brasileiro que se propõe a pensar essas questões a fundo, se chama MD Magno. Abstrair e dissolver os sentidos atribuídos ao amor pode ser um passo para um encontro mais maleável, com mais movimento para todo mundo.
- Palco ou divã?
Alice - Como analisanda, já não me deito no divã, embora tenha feito isso por muitos anos e tenha sido produtivo. Fico frente a frente com a minha analista. Dentro da linha que estudo, há um movimento de convidar um pouco mais o corpo: expressões, reações e demais manifestações também estão sob análise. Não abro mão disto no trato com as pessoas que chegam até mim, também. Respondendo à pergunta, vejo a análise como um palco. Se submeter à análise é fazer cena. A postura em relação ao inesperado em psicanálise é muito semelhante àquela que um palco musical exige: extrema curiosidade e abertura. Levo muito a sério as duas coisas e acredito que andam na mesma direção.
Bom, com as notícias da semana, só resta evocar Eduardo Dusek: "Levanta, me serve um café, que o mundo acabou!".
Acompanhe
Alice David
A obra da cantora está disponível no Spotify
O clipe do single "Tocar Minha Vida e Uma Canção Qualquer", com participação de Fernando Catatau está disponível no YouTube
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