Documentário da Disney relembra as histórias do 'Woodstock negro"
Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM
Ao longo das décadas de 1960 e 1970, uma infinidade de festivais tomou conta do planeta levantando bandeiras (paz, liberdade e fim das guerras) e tendo como atrações os futuros deuses da música pop. O filão foi bem explorado e gerou cenas antológicas (Jimmy Hendrix tocando fogo na guitarra no Monterey Pop Festival) e fiascos trágicos (a morte de um jovem negro durante um evento organizado pelos Rolling Stones).
Talvez mais lembrado daquela época seja o Woodstock, realizado em agosto de 1969. O elenco reuniu desconhecidos (Joe Cocker, Santana) e jovens estrelas (The Who, Janis Joplin, Hendrix), como muitos outros megashows fizeram. Arrisco dizer porque o Woodstock é o mais lucrativo e marcante entre tantos: dele nasceu um documentário que registrou de forma inconteste os símbolos da contracultura, o grito de liberdade de uma geração e a aproximação da arte com lutas políticas e sociais da época.
Curiosamente, a cerca 150 km daquela fazenda em Woodstock, outro evento acontecia na mesma época. O Festival Cultural do Harlem realizou sua terceira e última edição entre 29 de junho e 24 de agosto de 1969, e reuniu lendas como Gladys Knight, B.B. King e Stevie Wonder em apresentações gratuitas no Mount Morris Park - que hoje se chama Marcus Garvey Park, em homenagem ao ativista e comunicador jamaicano.
Os shows e o contexto que envolveram o Festival Cultural do Harlem são o tema do documentário "Summer of Soul... Ou quando a revolução não pode ser televisionada", lançado em 2001. A direção é de Questlove, da banda The Roots, que conseguiu acesso às mais de 40 horas de filmagens que ficaram guardadas por cerca de 50 anos. A ideia, na época, era que o festival rendesse um documentário na linha "Woodstock Negro", mas as imagens só foram exibidas em dois especiais - de uma hora cada - para a TV. Curiosamente, o forte do "Woodstock branco" eram sons negros, como funk, rock, soul, jazz, gospel e outros.
Por falar em gospel, uma das mais belas cenas do filme disponível no Disney é a apresentação de Mahalia Jackson. Num dia em que não estava se sentindo bem, a grande dama do gospel pede ajuda a Mavis Staples (das Staples Singers, também na programação) para cantar uma canção. Abatida, Mahalia passa o microfone para Mavis como quem entrega uma missão. Mahalia Jackson, primeira mulher negra a se apresentar no Carnegie Hall, morreu três anos depois, aos 60 anos. A propósito, aqui, entenda gospel como algo tradicional, vindo da cultura cristã e para a cultura cristã. Não é esse pastiche comercial que se popularizou entre cantores evangélicos que enriquecem pastores no Brasil.
Mais do que uma seleção de apresentações musicais, "Summer of Soul" tem uma forte preocupação em contextualizar os fatos. O assassinato de Malcolm X, quatro anos antes, ainda ecoava. O mesmo com Martin Luther King, em 1968 - tanto que uma das atrações do festival foi o saxofonista Ben Branch, que estava ao lado do pastor quando este foi morto a tiros. Pouco antes de ser assassinado, Martin havia pedido a Ben que tocasse "Take my hand, precious Lord" e foi atendido durante o evento no Harlem. John e Bobby Kennedy também foram lembrados pela multidão naquelas semanas, assim como a chegada do homem à lua em 20 de julho de 1969. Enquanto uns estavam maravilhados com os feitos da Apolo 11, o público do festival estava preocupado com epidemia de heroína, falta de emprego, violência policial e outros problemas terrenos.
O documentário de duas horas ainda fala sobre como a moda se transformava entre a população negra, que vinha adotando batas coloridas, cabelos soltos e visuais extravagantes. Quem exemplifica isso muito bem é a banda Sly&The Family Stone, um dos responsáveis por solidificar as bases do que é a black music (e que também foi atração no "Woodstock branco"). No lugar de penteados curtos e ternos iguais, o líder Sylvester Stewart chega ao palco de sapatos lustrosos, cabelos black power, larga corrente de ouro no pescoço, óculos roxos combinando com detalhes da blusa cheia de tiras. Não bastasse a imagem, a banda ainda foi corajosa ao misturar músicos negros e brancos e por contar com uma trompetista mulher, Cinthya Robinson.
Todas essas questões são ilustradas à medida que o filme combina imagens de época, perfis dos personagens, entrevistas e muito, mas muito contexto histórico. "Na época, a música era segregada. Grupos pop não tocavam black music e grupos negros não tocavam pop. Ficávamos no meio disso", comenta Billy Davis, do 5th Dimension. A banda era criticada à época por fazer um som "muito branco", uma vez que tinham as bases no jazz, pop e R&B. "Como você coloca cor num som?", questiona Marilyn McCoo, vocalista da banda que se incomodava com as críticas. Após a participação no festival, a banda foi melhor aceita entre a comunidade negra e conseguiu alcançar o topo das paradas com "Aquarius/ Let the Sunshine in".
Guardadas por tantos anos, as imagens do Festival Cultural do Harlem impressionam até quem esteve lá. Um entrevistado se emociona ao dizer que, enfim, pode ter certeza de que aquela sua memória infantil era real, não um sonho. Impossível não atribuir ao apagamento da cultura negra o engavetamento das filmagens por tantos anos. Dos cabelos ao som, tudo ali registra um momento histórico importante, quando os direitos básicos eram discutidos em muitas partes do mundo. Para aquela comunidade, formada principalmente por negros, latinos, hispânicos tentando sobreviver, a arte e a música eram mais que um alento, um conforto. Era também canal de luta e protesto. Cada martelada de Nina Simone em seu piano ou ela apontando seu discurso para a plateia ("povo negro, está pronto, pronto mesmo?") confirma isso.
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