Rita Benneditto: 'Iemanjá é soberana sob toda a ancestralidade dos orixás'
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Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM
Foto: Reprodução Youtube
Cantora Rita Benneditto lança single que celebra as águas
- Queria começar falando sobre essa nova canção, "Plenitude". Como ela chegou a você? Rita Benneditto – Ela chegou até mim através do compositor Gabriel Martins, que é filho de Vitor Martins, grande compositor, grande parceiro de Ivan Lins, que também é dono da gravadora Galeão, antiga gravadora Velas, que foi a gravadora que eu lancei o meu primeiro CD, ainda quando eu era Rita Ribeiro. O Gabriel que me chamou porque estava fazendo um projeto chamado “Elas Cantam As Águas”, onde ele convidava algumas cantoras para cantar músicas que falassem do universo da água, dessa energia do fluxo que tem a água, dessa força da natureza. E uma das músicas é essa, “Plenitude”. Quando ele me chamou, eu já gostei bastante do nome da música. Depois eu escutei a música tocada no piano pela Thais Nicodemo, que é uma das arranjadoras, e que também toca comigo na gravação. Eu achei muito bonito, me transportou para um lugar realmente de plenitude, de tranquilidade, de paz, de fluxo. Tudo que eu achei e acho que no momento é bastante adequado de poder cantar, de reverberar essa energia de plenitude para o universo, para as pessoas, para quem escuta. Acho que a música é energia fluida, ela é fluxo, ela é como a água, né? E ela acolhe também, ela lava, ela limpa, ela refresca, ela ilumina, então toda essa energia. E a gente fez um arranjo, eles pensaram num arranjo, como você disse, camerístico. De uma certa forma, simples, porém bastante sofisticado justamente por ser simples. Sou eu na voz, a Thaís Nicodemo no piano e o Marco Lobo na percussão.
- Além desse single, queria que você me apresentasse a esse projeto "Elas Cantam as águas". Rita Benneditto – Na verdade, eu fui convidada pelo Gabriel Martins para fazer esse projeto e, como eu disse, gostei muito do nome do projeto e entendi que ele é um projeto que reúne a energia do feminino, que é a energia da água, a energia da plenitude e também através de vozes de mulheres, através da força do canto de mulheres. De grandes mulheres inclusive, no caso a Leila Pinheiro, a Zizi Possi, a Fabiana Cozza, Fafá de Belém. Para mim é extremamente importante estar junto com essas mulheres que eu admiro para caramba, que eu acho que tem uma força na voz muito grande, na maneira como cantam, como interpretam, na maneira como elas veem a vida, como elas sentem a energia da música, então já é um grande motivo de estar no projeto. E também pensar que a gente está cantando energias que são sutis, energias que reverberam a energia, a força do universo, a luta pela preservação do meio ambiente. Essa coisa do deslocamento da gente para os lugares que são sagrados, essa conexão. Melhor dizendo, nem deslocamento, é conexão com o sagrado, com a natureza de forma plena. Esse projeto se propõe porque o Gabriel Martins, a música dele junto com o Carlos Papel, que é um grande compositor capixaba, ele tem uma vivência muito grande com a natureza. Ele vive na Chapada, numa região mais em contato com todo esse universo. Isso reverbera muito na criação, na forma como você vê a música, como você vê a vida. Acho que quando ele pensou nesse projeto, pensou em toda essa energia de fluxo mesmo, energia feminina, energia de acolhimento, energia de amor, energia de força da natureza. E ele pensou nas mulheres, nas cantoras, para fazer parte do projeto justamente porque tem esse poder feminino, essa força feminina reverberando nas canções. Então eu acho que a ideia dele foi essa e, quando eu fui convidada e ele me falou disso, eu automaticamente me identifiquei. Porque tem a ver comigo, tem a ver com a minha proposta de trabalho, tem a ver com a forma como eu vejo a música, como eu absolvo a energia das melodias, das letras. Isso tudo para mim é importante. A forma com que eu canto, para que chegue a mais pessoas, para que não apenas seja um canto de entretenimento. Que é importante, mas, principalmente, um canto de transformação, de acolhimento, de força.
- Quando você canta sobre as águas me vem à mente duas perspectivas: o cuidado com o meio ambiente e o aspecto místico religioso desse elemento. Começando pelo primeiro, a pauta do meio ambiente vem gerando mais discussões ultimamente. O que falta para o ser humano perceber a importância de cuidar do meio ambiente com mais seriedade? Rita Benneditto – Quando a gente canta as águas, a gente canta o sagrado, a gente canta a vida, a gente faz pulsar a vida no máximo, porque água é vida, é fluxo, é energia de poder, poder físico e poder sagrado, poder sobrenatural. Então é o místico religioso. E essa questão do meio ambiente é justamente porque ele está sendo devastado, destruído. O ser humano está totalmente desconectado com o meio ambiente. A Terra é um planeta divino, é uma casa lindíssima. Um espaço lindíssimo, um planeta riquíssimo e, no entanto, a gente não está tendo a percepção que deveria ter de preservação, de cuidado, de amor por essa casa, por esse planeta, pela fauna, pela flora, pelos animais, por tudo que nos é dado pelo universo, que é imprescindível para a nossa existência. Sem a água, sem o fogo, sem as árvores, sem a terra, a gente não sobrevive, né? Eu acho extremamente importante que a gente cante os elementos sagrados. Não só a água, mas a terra, o vento, o fogo, o ar. Especificamente aqui, nesse projeto, a gente está cantando as águas, porque é um elemento muito sagrado, de muita força, muita fluidez. Fico assim pensando que, infelizmente, a gente tem que estar agora lutando pela preservação do meio ambiente, justamente pela inconsequência da humanidade de não cuidar, de não preservar o que é sagrado, os elementos sagrados da natureza. Sem falar que a água, no meu caso, no espectro religioso, místico, ela tem uma representação lindíssima de um poder feminino que vem das deusas, do panteão africano. No caso, Oxum, especificamente, que é a senhora das águas doces, das cachoeiras, dos rios. Iemanjá também, que é a senhora das águas. São elementos femininos, são forças da natureza, de poder ancestral, que carregam uma ancestralidade muito possante. É fundamental que a gente cante, reverbere esse tipo de canto, que fala das águas, da plenitude, que toque as pessoas, sensibilize as pessoas para se reconectarem com o meio ambiente, se reconectarem com a energia da natureza e terem muito mais cuidado com o nosso habitat, a nossa terra, o nosso planeta.
- Hoje, 2 de fevereiro é dia de Iemanjá. Qual a importância desse Orixá para você? Rita Benneditto – Nossa! Iemanjá é a rainha do mar, é a senhora das cabeças e é mãe de todos os orixás. No candomblé, ela é junto com Oxalá, ela é a mãe, ele é o pai de todos os orixás, de todo o panteão dos deuses africanos. Então, é a senhora da cabeça e a cabeça para a gente é a parte principal do nosso corpo. A cabeça, o Ori, né? Iemanjá é quem firma o Ori de todos os filhos, independentemente de você ser filho de Iansan, Oxum, Oxóssi... Mas você tem Iemanjá com você, é a mãe de todos, está conosco em qualquer circunstância. Ela tem uma importância fundamental para as nações do candomblé, para a religiosidade do povo do Axé e, para mim também, porque sou filha do Axé e quem é do Axé diz que é. Eu tenho Iemanjá como uma grande mãe de poder, de força, também de acolhimento, de amparo. Iemanjá é soberana sob toda a ancestralidade dos orixás. É uma grande energia de poder feminino. Então tem importância para mim, tem uma importância imensa para todo o Brasil, porque é uma das deusas do panteão africano que é reverenciada a nível nacional. Todo mundo celebra Iemanjá no dia 2 de fevereiro. Ela tem uma representação gigante para a ancestralidade do povo africano no Brasil. Ela é um rio, ela é o mar, ela é a força da maternidade, ela é a natureza em sua plenitude.
- Como aconteceu sua aproximação com o candomblé? Rita Benneditto – Não fui criada dentro do candomblé, né? Eu venho de uma família católica, pai e mãe católicos, frequentei a igreja, fiz primeira comunhão, aquela coisa toda. Mas a gente quando tem a ancestralidade latente assim, a gente acaba sendo encaminhado naturalmente a buscar a ancestralidade, que foi o meu caso. Quando eu estava mais para adolescente, fase adulta, que eu já podia tomar minhas decisões com mais autoridade. Meus pais nunca me proibiram de nada, nunca ficaram me proibindo de frequentar as coisas e me deixaram livre para aprender, conhecer. Eu frequentava muitos terreiros do Maranhão, do Tambor de Mina – não é um candomblé, mas seria uma referência do que é o candomblé –, os terreiros de Encantaria do Maranhão, do Terecô também. Então eu fui conhecendo essas casas, esse universo da ancestralidade afro-brasileira, as grandes mães, os grandes terreiros, os grandes ialorixás. E fui me envolvendo cada vez mais, me encantando com todo esse universo dos terreiros, dos rituais. Uma identificação imediata, mas somente aqui no Rio de Janeiro, quando eu me mudei, foi que eu realmente tive um contato mais próximo, mais direto com uma nação de candomblé, no caso Candomblé de Angola, que é uma das primeiras nações e que é de Angola. Eu fiquei durante muitos anos numa casa que a mãe de santa, Ialorixá, era da Angola. Aprendi várias coisas, inclusive “Tecnobacumba” é um projeto estruturado todo em cima da Nação Angola. Os cânticos que eu canto são específicos da nação Angola. E aí eu fui me empoderando mais disso, vivendo mesmo o axé, frequentando, conhecendo. Hoje eu tenho já um caminho dentro da religiosidade, não só de frequentar por curiosidade, mas também por ser atuante dentro do terreiro. Para mim o terreiro é uma escola, né? É uma filosofia de vida mais do que uma religião. A gente vai estudando, vai aprendendo, vai alcançando níveis, graus de aprendizado. Depois do terreiro de Angola, minha mãe faleceu e eu fui para um terreiro da nação Nagô, que tem uma conexão também direta lá com o meu estado, o Maranhão. Então permaneço muito presente dentro do axé, na parte que diz respeito aos rituais e também na parte que diz respeito à questão cultural. No caso, com o projeto “Tecnomacumba” e na defesa também pelos povos de terreiro, atenta a todo o movimento que a gente faz, que não é fácil para ter respeito. A gente não quer tolerância, a gente quer respeito. Respeito às nossas crenças, aos nossos rituais e aos nossos direitos. A gente cultua a natureza. Nossos deuses representam elementos da natureza. Então, assim, eu não consigo entender porque tanta perseguição, porque tanto descuido e tanto desrespeito com a religiosidade de matriz africana, sendo que nós somos mais de 50% do povo brasileiro. Eu diria que quase 100% do povo brasileiro vem de matriz ameríndia africana. É quase uma negação do que nós somos. Isso não pode acontecer. A luta é grande, a gente continua lutando. Eu tenho muito orgulho de ser uma filha do axé e eu digo que sou. Canto o meu axé, canto o axé brasileiro, a gente reverencia a música, a dança, o alimento, tudo que é sagrado para nós humanos. Por isso que eu considero o candomblé, as religiões de matriz africana, como mais que uma religião, são uma filosofia de vida, um espaço de acolhimento, de ensinamento. São verdadeiras escolas de vida.
- A cultura das religiões afro-brasileiras está intimamente ligada à sua música, desde o primeiro disco. Qual é a importância que você vê de abordar sempre esse tema? Rita Benneditto – Vem da ancestralidade, vem da consciência de saber quem eu sou, onde eu vivo, quem me formatou, no caso eu tenho consciência da minha estruturação como pessoa a partir de duas grandes matrizes, que é a matriz ameríndia e africana. De vir de uma região como o Maranhão, que é uma região de força afroameríndia muito grande. Há uma presença muito forte, não só no Maranhão, mas no Brasil inteiro, mas eu nasci lá vendo essa força, vendo a força das casas de axé e também das nações indígenas que existem lá, das comunidades indígenas que existem no Maranhão. Eu tenho isso naturalmente no sangue, na pele, na formação, e acho que isso foi constituindo o meu canto, foi constituindo a minha personalidade, a minha pessoa artística. Eu fui bebendo nessa fonte, fui entendendo, fui pesquisando, fui vivenciando e vi que isso se ampliou, que isso também estava presente em todos os estados do Brasil. Então eu saio do Maranhão, vou para o São Paulo, depois venho para o Rio de Janeiro, e aí eu vou tendo contato com todo esse universo da cultura brasileira que é muito forte e que é onde eu vejo que em toda a música, em toda a dança, em toda a cultura brasileira estão presente essas duas matrizes de formação, de estruturação da nossa história, da nossa cultura. Então naturalmente eu caminhei, meu trabalho foi caminhando mais ainda para esse lugar de pertencimento da força da cultura afroameríndia brasileira. Eu fui bebendo mais e mais nessa fonte, assim como tantos outros artistas do Brasil, e fui encontrando ali mais o meu lugar. O meu lugar de fala, o meu lugar de canto, o meu lugar de resistência, o meu lugar de consciência. Desde o meu primeiro trabalho, o meu primeiro disco lançado, eu já lancei a “Cabocla Jurema”, que deu origem inclusive ao nome do projeto “Tecnomacumba”. Foi um ponto recolhido num terreiro de encantaria do Maranhão. Depois, no segundo disco, eu já fiz uma música em homenagem aos Orixás, que se chama “Na gira”. Gravei no terceiro disco “A Moça Bonita”, do Evaldo Gouveia e Jair Amorim. Então, em cada disco eu fui fincando ali o bastão, ficando pé na minha raiz, na raiz afroameríndia, que é brasileira, que me estrutura, que me fortalece, que me representa. E quando surge o “Tecnomacumba” na minha vida eu tenho mais certeza ainda que esse é um caminho a ser trabalhado, a ser vivenciado e a ser explorado no melhor sentido, para que sirva de alerta e como uma forma de despertar as pessoas para a riqueza da nossa cultura a partir dessas duas matrizes que nós temos tão forte que formatam o nosso povo.
- Um dos seus projetos mais celebrados e reconhecidos, o “Tecnomacumba” nasceu quando você estava num terreiro vendo a gira. Qual a importância da música para esses rituais? Rita Benneditto – “Tecnomacumba” nasceu realmente da minha vivência dentro de um terreiro observando uma gira. E a percepção que eu tive é que música e dança, naquele momento do transe religioso, são elementos de catalização de energia. A partir da música e da dança é que os orixás, os encantados, os caboclos, as entidades se manifestam. E elas se manifestam a partir do toque do tambor, dos sagrados tambores. E também a partir dos cânticos entoados, das palavras ditas. Então tem toda uma conexão muito forte da música com esses rituais. Assim como dizem que não existe candomblé sem folhas, também não existe sem dança e música. São representações do que é humano, mas ao mesmo tempo o que é sagrado. O sagrado do humano ou o humano sagrado. Então não existe candomblé, umbanda sem música e dança, justamente porque a partir dos movimentos, a partir do canto, a partir do toque do tambor é que se faz o grande transe, a grande vibração de energia, a grande catalisação da energia. Então esses elementos são fundamentais, e especialmente a música é fundamental dentro dos rituais de candomblé e umbanda, dentro dos rituais sagrados do Brasil. Não só do candomblé da umbanda, mas da pagelança, do toré, da encantaria, do Tambor de Mina, de tantas manifestações que precisam dessa energia de catalisação, de força, para fazer a energia girar, a espiral de energia subir.
- Em algumas religiões, a mistura de elementos retualísticos com outros de fora costumam gerar críticas e polêmicas. No caso, quando você juntou os sons do candomblé com a batida eletrônica e outros instrumentos do universo pop, como foi a recepção do seu público? Rita Benneditto – Olha, eu tenho 21 anos de “Tecnomacumba”. Então, o tempo que é um grande orixá, o senhor de todos os orixás, ele é a prova viva e atemporal do sucesso que é “Tecnomacumba”. Obviamente que no início as pessoas ficaram receosas da mistura. Alguns diziam assim: "Ah, isso não é música popular brasileira. Ah, mas isso também não é música de terreiro. Ah, mas isso também não é música eletrônica”. Alguns comentários apareceram assim, mas as pessoas não podiam negar que a junção desses elementos todos deu realmente um grande resultado, né? Uma amálgama de boa qualidade. Em primeiro lugar, eu fiz isso tudo muito respaldada pela ancestralidade. Eu não faço nada sem me respaldar religiosamente. Eu vou perguntar se eu podia, se eu tinha autorização de mexer com uma energia que é sagrada. Muita coisa dos rituais de candomblé e umbanda são restritos apenas às casas. Isso aí é uma coisa que tem que ser respeitada. Quais são os orixás que eu podia cantar? Como é que eu podia fazer? Se eu podia fazer essa mistura, juntar essas músicas da maneira como eu pensei, dar essa conotação pop rock, contemporânea e eletrônica para as músicas. Tudo isso foi pensado, consultado, elaborado, experimentado. E acabou que a aceitação é geral. Não é só do público, que não é especificamente da religião, mas principalmente da religião. Já recebi muitos prêmios e também muitas louvações, pode se dizer assim, de vários terreiros que inclusive me agradecem pelo fato de eu mostrar a música de terreiro, a força que tem a música dos terreiros a nível cultural. Destacar a importância cultural que tem toda essa ancestralidade, essa música. Então não foi só apenas um show de entretenimento. Eu considero “Tecnomacumba” uma intervenção cultural, sabe? Um manifesto mesmo de brasilidade, que tem como objetivo valorizar cada vez mais a ancestralidade do povo negro afro ameríndio brasileiro e também sua música, sua dança, seus rituais, sua forma de viver, de pensar a vida. Então assim, eu trouxe os terreiros para dentro dos palcos respeitando todos os limites que são impostos, de coisas que você não pode simplesmente mexer ou colocar de qualquer jeito. Eu sempre tive muita reverência, até porque eu sou filha do Axé. Então tudo foi pensado cuidadosamente e foi pensado tão cuidadosamente que ele dura com sucesso há 20 anos. Eu acho que eu fui muito bem recebida. Eu gostaria que a grande mídia brasileira abrisse os olhos para esse projeto, abrisse os olhos para esse movimento. Porque a “Tecnomacumba” já gerou outras gerações que fazem o que eu despertei, que eu comecei a fazer, que é que é essa mistura rica que o Brasil de ritmos, géneros. Eu sou muito agradecida a todos os orixás, a todos os guias e entidades que me deram oportunidade e voz para fazer esse projeto. Sou agradecida a todos os as comunidades terreiro que me reverenciam pelo trabalho. “Tecnomacumba” está em quase todos os terreiros do Brasil, já é assunto de tese de mestrado, doutorado. Tudo isso que eu fiz com muito amor, muita verdade, muita consciência e respeito e eu sou muito agradecida.
- Outro disco seu que merece nota é "Encanto", em que você amplia o conceito do sincretismo juntando canções que remetem a diversas religiões brasileiras. Queria que você contasse a história desse projeto e a importância dele para a sua trajetória. Rita Benneditto – Que interessante você falar do “Encanto”, falar dessa forma, que remete a diversas religiões brasileiras. O “Encanto” tem várias representações para mim. Ele marca o meu primeiro disco depois da mudança do nome, de Rita Ribeiro para Rita Benneditto. E eu quis voltar para minha terra Maranhão, que foi onde eu fiz as fotos para capa do disco. Eu botei o nome “Encanto” para vir de encantaria, para dizer que Rita Ribeiro se encantou, que agora é Rita Benneditto. Ou seja, nada morre, tudo é permanente, tudo é cíclico. Eu continuo reverberando a energia do meu Ribeiro, porque é meu nome de nascimento, mas ao mesmo tempo eu incorporo a força de Benneditto que vem da minha devoção ao Preto Velho Pai Benedito das Almas de Angola e vem também a São Benedito, santo preto brasileiro. E vem também da palavra “bendito”. Então o “Encanto” representa toda essa renovação, sabe? E também essa renovação minha, particular, pessoal por conta da mudança do nome e também um uma continuidade de “Tecnomacumba”. Um disco que fala como que “Tecnomacumba” pode continuar a partir de outras visões. Acho que talvez as pessoas não tenham feito tanta associação desse disco com “Tecnomacumba” por causa do nome. Se eu tivesse colocado “Tecnomacumba 2”, talvez elas tivessem uma percepção maior que ele é uma continuidade do projeto “Tecnomacumba”, só que ampliada. Eu fui buscar várias referências. Esse disco tem a presença do meu Babalaô incorporado no Pai Benedito, que fala um texto lindo sobre a fé, o amor. Tem também a presença de um padre jamaicano, Rastafari, na música “Extra”, do Gilberto Gil, que é uma música que fala desse contato extraterrestre, dessa sutileza das energias que estão conosco, que a gente às vezes não tem muita percepção. A gente não está sozinho no universo, no mundo, nem no planeta, nem na nossa cidade. Sozinho que eu digo, não apenas com humanos iguais a nós, mas seres que estão ao redor, que respiram, que sentem e não necessariamente que tem a forma humana. Eu resgatei músicas de Villa-Lobos, onde ele já fazia pesquisa sobre a música da Macumba, que é aquela “Estrela é Lua Nova”. Ele fez um projeto dos anos 1930 de percorrer o Brasil buscando toda essa riqueza dos grotões brasileiros. Eu gravei “Babalu”, que é uma música cantada em espanhol, mas que vem da santeria cubana, que fala da entidade Obaluaiê de uma maneira direta. Eu gravei “Fé”, de Roberto Carlos, também para falar da fé, que independe da sua religião, é uma coisa que faz parte de cada um de nós. É um disco que eu quis dar continuidade de ideia do “Tecnomacumba”, só que ampliando um pouco a visão. Porque o “Tecnomacumba” representa um ritual de candomblé, um xirê, mostrando toda a sequência dos orixás. E o “Encanto” não, ele fala de toda essa santidade, todos esses elementos da fé, do amor, da força do banho, no caso o “Banho de manjericão”, da força dos das conexões astrais, extraterrestres. Eu gravei “Santa Clara, Clareou”, que é um sincretismo de Iansã com Santa Clara. Eu fiz uma viagem tentando ampliar o conceito de “Tecnomacumba” e eu gosto muito desse disco. Mas ele não teve tanta reverberação “Tecnomacumba”, porque “Tecnomacumba” é muito específico, muito direto sobre a questão da ancestralidade afro ameríndia brasileira.
- Apesar de ser claramente miscigenado e sincrético, os casos de intolerância religiosa no Brasil ainda são recorrentes. Porque isso ainda acontece? A partir da sua visão particular, nesses mais de 30 anos de carreira, o que você acha que mudou nesse cenário? Rita Benneditto – É como eu digo, quem é que quer ser tolerado? Ninguém. Todos nós também merecemos respeito. Mas eu entendo que isso acabou virando um termo muito comum, “intolerância religiosa”. Lutar pelo respeito ao estado laico brasileiro que nos garante a liberdade de professar nossas crenças e aceitar nossas diferenças. É isso que a gente precisa cada vez mais ter forte e vivo na nossa cultura, na nossa existência e na nossa nação. Porque não tem justificativa, nunca teve, para isso. Por que tanta negação ao que é nosso? Por que negar nossas duas grandes heranças, que é a herança ameríndia, que é dos povos originários, donos dessa terra, e a herança africana, que é um povo que não pediu nem para vir para cá, no entanto, foi escravizado, veio sem identidade, teve que se adaptar, trouxe uma riqueza imensa cultural e foi formatando o nosso povo, a nossa história como país. No entanto, permanece até hoje, tanto os povos originários como o povo negro brasileiro, massacrado, desrespeitado, descuidado. Claro que, da época da escravidão até hoje, muita coisa mudou. Paramos de ser açoitados em pelourinhos, paramos de ser tratados como mercadoria ou como posse de alguém, mas ainda permanece a escravidão no pensamento das pessoas, as atitudes, até nas formas de trabalho, como muita gente trabalha no Brasil de forma escrava, na cor da pele que é ainda totalmente rejeitada. Quem sente mesmo o racismo diretamente é quem tem a cor preta. A gente que tem aquela cor um pouco, sei lá, amarelada, parda, como dizem, a gente sente, mas sabe que o preto é que sente mais forte na pele, literalmente, é a força do preconceito brutal que insiste ainda permanecer nesse país. Os povos originários também, como eles são quase que apagados na sua própria vida e história. Mas não quero falar só da coisa negativa, muita coisa avançou. Hoje, por incrível que pareça, a gente tem um ministério indígena. É uma coisa que já era para a gente ter há muito tempo. Hoje muita gente dá um movimento mais de empoderamento, de consciência da sua força motriz, da sua origem, da sua ancestralidade. Tem muita coisa acontecendo, muitas conquistas. Também não vamos pensar só no lado negativo. Mas, no geral mesmo, a gente ainda vê que que não é suficiente, que ainda é muito pequeno perto do tamanho desse país que é continental. A gente avançou bastante, porém a gente sofre ainda na pele todos os dias o preconceito, o racismo e de forma brutal. Então, mudou, mas não mudou tanto não. Precisa mudar muito ainda, precisa avançar muito. Precisa ser muito mais amplo, ampla consciência de mudança, sabe? De aceitação, de respeito mesmo. Eu acho que só a partir daí, dessa consciência de onde nós viemos, é que nós vamos ter realmente capacidade de ir adiante, de saber para onde vamos. De ter consciência do que nós somos, da nossa grande riqueza ancestral, que nos deram os povos originários e africanos. Aí sim, a gente vai se empoderar do nosso país, da nossa força de ser brasileiro. Ainda tem muito o que ser feito, porém vamos também celebrar o que já foi conquistado.
- Na música brasileira, muitos cantores e compositores abordaram elementos das religiões afro-brasileiras das mais diferentes formas. Tincoãs, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Dorival Caymmi... Para você, quem são os nomes mais importantes para difundir essa cultura? Rita Benneditto – Você citou nomes aqui fundamentais, pessoas de alto nível. Tincoãs, Gilberto Gil, Maria Betânia, Dorival Caymmi, sem dúvida. Também Clementina de Jesus, Clara Nunes, Noel Rosa também, Assis Valente, Nei Lopes. O próprio Caetano também gravou muitas coisas de reverência à cultura africana. Olha, o Brasil tem uma riqueza de compositores que beberam na fonte das religiões de matriz africana que é imensa, não daria nem para fazer uma lista aqui que não ia caber no jornal. A MPB bebe muito na fonte das religiões de matrizes africanas, então eu não posso citar um nome só. É muita gente, é muita gente de várias gerações, de vários tempos, até hoje, que estão ligadas, estão atentas, estão ainda bebendo nessa fonte porque é uma fonte que nunca seca. É uma fonte que não vai secar nunca, porque é verdadeira, é fluida, é poderosa. Então eu acho que, além desses que você citou, e os que eu comentei aqui também existe de gerações passadas e atuais, muitas pessoas comprometidas com a preservação das religiões de matrizes africanas a partir da música, através da música.
- Quando você vê a juventude atual, você acredita que futuramente teremos um país mais tolerante e respeitoso com as mais diferentes crenças? Rita Benneditto – Olha, essa última pergunta é quase um desejo, né? (risos) Desejo teu, um desejo nosso. A gente quer realmente que a juventude tenha percepção de onde que ela veio, quem é, onde ela está, qual é o país, como é que foi formatado esse país, como ele foi estruturado, como ele foi criado, como é que ele surgiu, né? Como é que ele se estruturou ao longo dos anos. Para isso é preciso ter memória, memória viva, forte, permanente. Eu às vezes me preocupo muito porque o Brasil sofre de um problema de memória gravíssimo. Uma delas é achar que aqui não teve ditadura militar. E também a gente fica muito à mercê dos tipos de governo. Se entra um governo de esquerda, se entra um governo de extrema direita. Tudo isso influencia no que você absorve em termos de informação, em termos de cultura, ciência. Eu penso que também com essa questão da internet, do mundo virtual, acho que a juventude tá muito deslocada desse universo da natureza, que é o que nos põe no chão, o que nos dá base sólida de saber onde nós estamos pisando, quem nós somos, de onde nós viemos, quem são os povos que nos constitui, qual foi a herança cultural que nós recebemos, porque que é importante preservá-la, porque que é importante mantê-la, porque que a música brasileira é tão rica, porque a gente preza pela poesia, pela prosa, pela força da palavra. Nossa língua é diferenciada e as melodias são também muito particulares. Nosso cinema, nossa literatura. Tudo isso tem que estar todo tempo sendo mantido como forma de fonte de informação e de incentivo para essa juventude. O que eu vejo hoje um pouco é uma diluição muito grande de tudo isso. As pessoas não estão mais lendo muito. Estou falando meio de uma forma geral, tá? Eu não quero dizer que a juventude brasileira não lê, eu não tenho estatística disso. Mas quero dizer que, diante de milhões de informações, desse acesso a tanta informação, o que parece é que a gente tá meio desinformado no geral. Está tudo muito efêmero, tudo muito rápido. É tanta coisa que a gente não absorve quase nada. Isso acaba prejudicando a memória, acaba prejudicando a forma como você se interessa. É preciso tempo para você entender as coisas e se aprofundar nelas. E eu acho que a superficialidade que impera hoje no geral da sociedade te deixa muito solto, deixa a juventude muito solta, sem um propósito, sem um aprofundamento das coisas. Eu acho que é importante ler, ouvir música, ver filmes, ver exposições, conversar, buscar a história do país. Se inteirar de onde você veio, quem você é, quem são os seus ancestrais. Eu acho que isso tudo fortalece a personalidade, a estrutura de cada jovem, de cada um de nós. Eu, por exemplo, na minha juventude tive o prazer e a sorte de ouvir muita música boa, de poder ir ao teatro, de poder participar de grupos de dança e de ver a cultura popular do meu estado e de ser incentivada a ler e a conhecer autores. Isso é fundamental para a formação de uma criança, de um jovem, para que ele possa continuar levando isso para outras gerações, né? Eu acho que é fundamental que a gente tenha toda essa consciência para que a gente tenha um país um país com mais respeito, né? Com mais força, com mais consciência de si mesmo. O Brasil precisa ter mais consciência da força do poder que ele tem como nação. E para isso a gente tem que estruturar nossas crianças, os nossos jovens, né? Para que eles continuem na luta.
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