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Som da lata
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Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM

Marcos Sampaio arte e cultura

Som da lata

Há 30 anos, Fernanda Abreu dava uma virada na carreira juntando o pop universal com a batucada brasileira
Tipo Análise
Fernanda Abreu em imagens do disco
Foto: Walther Carvalho/ Divulgação Fernanda Abreu em imagens do disco "Da Lata"

Nos anos 1990, o Brasil buscava uma cara para sua música pop. A década anterior foi dominada por artistas que se identificavam como "rock nacional". Nem todos ali eram rock mesmo, a começar por Lulu Santos, o mais pop de todos, que já misturava dance, eletrônico, samba, bossa nova, blues e funk no seu som. Quem também percebeu a força da mistura foi Fernanda Abreu que, após muito sucesso com a Blitz (que era mais rock nas ideias que no som), estava em busca de algo novo para começar uma carreira solo.

Convidada pelo sociólogo Hermano Vianna, Fernanda foi a um baile funk comandado pelo DJ Malboro e o que ela viu abriu algumas portas. Ritmo, sonoridade, samplers, tudo era novidade. Ela usou o que pode em "Sla Radical Dance Disco Club" (1990), álbum que inaugura um som novo no Brasil. Seria inviável pagar direitos autorais a todos os artistas que ela sampleou com ajuda de gente como o próprio Malboro. Mas, como não havia legislação para isso, ela fez a estreia solo e ainda lançou um segundo.

"Sla² - Be Sample" (1992) segue a mesma linha do anterior, mas já abrasileirando mais com os pandeiros e tambores orgânicos do mestre Marco Suzano. Mas foi três anos depois que a mais carioca das cariocas encontrou o tempero certo e o nome do prato que queria servir ao Brasil: "samba funk". A ideia era a mesma desde a estreia: fazer música dançante. E foi com o disco "Da Lata" (1995) que ela conseguiu a medida correta de sons elétricos, eletrônicos, percussivos, sampleados, brasileiros e universais. Não por acaso, ela dedica o disco "a todos os ritmos e levadas desta cidade maravilhosa".

O nome do álbum vem de uma história que marcou a vida praiana do Rio de Janeiro. Em 1987, o navio japonês Tunamar (ou Solana Star) saiu da Austrália com 22 toneladas de maconha acondicionadas em latas de 1,5kg. O destino era Miami, mas os planos foram frustrados quando a tripulação soube que a polícia militar brasileira estava aguardando os traficantes fazerem uma parada no porto carioca. A solução foi jogar todo o carregamento ao mar. Por mais de um ano, foi possível ser surpreendido por latas cheias de cannabis da melhor qualidade nadando até a areia. Coincidência ou não, "Da Lata" tem como epígrafe: "Legalize já porque uma erva natural não pode te prejudicar (Planet Hemp)".

A expressão "da lata" passou a ser sinônimo para tudo que tem boa qualidade. Se essa história é demasiado brasileira, também foi essa demasia que Fernanda buscou para seu terceiro disco. Dos anteriores ela trouxe parceiros como Herbert Vianna, que tocou guitarra e teclados em "Sla Radical" e aqui volta para dividir os vocais de "Veneno da Lata" com Fernanda e sua filha Sofia, à época com três anos. O paralama ainda toca guitarra numa bela versão de "A tua presença morena", de Caetano Veloso.

A lista de convidados segue com Claudio Zoli, Lenine, bateria da Mangueira, o gaitista Flávio Guimarães, o compositor e produtor Will Mowat, Daddae Harvey (do grupo Soul II Soul), Pedro Luis e Jaques Morelenbaum. Com esse elenco, ela resgata "Rio Babilônia", dos gênios do pop oitentista Robson Jorge e Lincoln Olivetti, e a lisérgica e apaixonada "Somos um", de Mathilda Kovak. E segue com a carnavalesca "Brasil é o país do suingue", a assertiva "Tudo vale a pena" e a super pop "Garota sangue bom".

Fernanda Abreu

"Da Lata" foi tão revelador que Fernanda Abreu se sentiu à vontade para posar nua na contracapa. Até então, ela preferia fotos borradas e closes no rosto para que nada tirasse a atenção do som. Ainda na imagem, o encarte do disco traz fotos dela vestida de panelas e placas de carro num figurino inspirado em Arthur Bispo do Rosário. O resultado dessa mistura de brasilidades foi o reconhecimento nacional e internacional para um som feito de tantos sons. Na sequência, em 1997, ela resolveu explorar tantas possibilidades num disco que revisitava a própria obra ao lado de um time estrelado de convidados. De Chico Science e Carlinhos Brown a André Abujanra e Planet Hemp, ela lançou "Raio-X" para seguir revelando o que sua música tem para dizer.

 

Wanda Sá é uma das convidadas do disco 'Elas Cantam Donato'
Wanda Sá é uma das convidadas do disco 'Elas Cantam Donato'

Donato é delas

Em 17 de agosto de 2024, João Donato completaria 90 anos. Ele quase comemoraria a data, não tivesse falecido em 17 de julho do ano anterior. Para celebrar as nove décadas de nascimento do músico que latinizou a bossa nova, a Biscoito Fino lançou nas plataformas digitais o disco "Elas Cantam Donato". Produzido pela viúva Ivone Belém junto com Regina Oreiro, o tributo curtinho reúne nove cantoras em torno de oito composições do acreano de alma carioca.

Cinco dos arranjos foram entregues ao pianista Itamar Assierre, que imprime personalidade sem querer se afastar do universo sonoro de Donato. É o caso, por exemplo, do bolero "Surpresa", cantado apaixonadamente por Zélia Duncan. Já em "Lugar Comum", o piano assume ar misterioso dentro de um arranjo que engradece a voz impecável de Mônica Salmaso. Esse mesmo piano surge suingado em "Bananeira" e "Sambou sambou", nas vozes de Luedji Luna e Mart'nália, respectivamente.

Também é de Assiere o arranjo de "Azul Royal", rara parceria de Donato com Maurício Pereira. Bossa de toque clássico, a faixa ganha um dueto de duas mestras do estilo: Joyce e Wanda Sá. "Elas Cantam Donato" se completa com Simone classuda cantando "Não sei como foi", com belo arranjo sinfônico de Marcos Valle. Para a linha pop de Donato, sua parceira Tulipa Ruiz (com arranjo do irmão Gustavo) cerca "Naturalmente" de teclados, beats e timbres estranhos. Por fim, Teresa Cristina (com arranjo do violonista Lula Galvão) faz uma interpretação aquém da beleza de "Verbos do Amor", lançada por Gal Costa em 1982. Mas, mesmo esse ponto fora da curva não arranha a beleza e intenção de um tributo que celebra a maestria e a originalidade da obra de João Donato.

 

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