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Referência da cena blues de Fortaleza, Roberto Lessa lança álbum de estreia
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Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM

Marcos Sampaio arte e cultura

Referência da cena blues de Fortaleza, Roberto Lessa lança álbum de estreia

Expoente da cena blues de Fortaleza, Roberto Lessa lança "Wolf", primeiro disco de sua carreira solo
Tipo Opinião
O músico Roberto Lessa já integrou as bandas Blues Label e Gumbo Blues (Foto: Chris Machado/ Divulgação)
Foto: Chris Machado/ Divulgação O músico Roberto Lessa já integrou as bandas Blues Label e Gumbo Blues

Natural do Crato, Roberto Lessa faz parte de uma turma que inventou a cena blues de Fortaleza. Digo "inventou" por que não existiriam Felipe Cazaux, Artur Menezes, De Blues em Quando, Double Blues se não fosse um amor próprio dedicado a esse estilo importado dos EUA. Com muita força de vontade, coragem e talento, eles criaram os espaços, os eventos, a cena e o próprio repertório. Roberto tem algumas bandas no currículo, assim como muitos festivais. Ele tem 18 singles, dois EPs e, enfim, chega o primeiro disco solo, "Wolf". Tudo dedicado ao "Blues", que ele escreve com letra maiúscula. Por exigência de estilo, consertei para o minúsculo, mas "desconsertei" em respeito ao mestre. E é ele quem conta a história.

Discografia – "Wolf" chega depois de mais de 20 anos de carreira, 19 singles e três EPs. Por que agora lançar um disco inteiro?
Roberto Lessa – Quando resolvi seguir carreira solo, em 2018, quis logo fazer um lançamento para marcar essa etapa. Assim lancei o EP “Lone Wolf”. Com a supremacia das plataformas digitais, ficou ainda mais fácil e até recomendado fazer lançamentos em formato de single. E assim segui com os três lançamentos posteriores, à medida que produzia, lançava em forma de single. Mas eu queria um álbum para ser um marco maior. E comecei a produção do “Wolf”. Isso foi antes mesmo da pandemia, em 2019. Nessa época já começamos a ensaiar umas composições. Veio a pandemia, e o mundo virou. Nesse tempo lancei singles gravados em meu home studio e dois EPs, um deles com músicas da época de Blues Label, celebrando os 20 anos da banda.

Discografia – Queria que você relembrasse um pouco da trajetória desse álbum, desde que você decidiu que havia chegado a hora dele, até criar o conceito, repertório, banda.
Roberto Lessa – Comecei a pensar em um álbum em 2019 ainda, meses depois de lançar o EP “Lone Wolf” e de gravar três músicas que lançaria como single. O álbum iria se chamar “Lonewolf”, como se fosse uma continuação do EP de estreia. Nessa época, já havia pensado nas fotos e na capa. Encomendei duas manoplas (que são cenográficas, de madeira), uma com os nomes “LONE” e a outra “WOLF” para usar na sessão de fotos. Começamos então a ensaiar as músicas que iriam fazer parte do álbum, mas a pandemia interrompeu tudo. Conforme foi possível, na primeira abertura do lockdown, a banda se reuniu novamente. Voltamos aos ensaios, inclusive com músicas compostas na pandemia. Fizemos duas sessões de gravação com praticamente um ano de intervalo. A primeira sessão, de setembro de 2022, seria apenas para pré-produção, para ver como as músicas funcionariam, se necessitavam de alterações. Mas muitos registros dessa sessão ficaram excelentes e eu aproveitei a maioria das músicas do álbum dessa sessão. Músicas como “Mr. Engineer”, “How Long is Forever” e “No Room for Innocence”, além do meu arranjo para o clássico “Catfish Blues”, que quis lançar apenas como single, e o fiz em março de 2023. Nessa época eu já tinha feito a sessão de fotos com o fotógrafo Chris Machado, e após posar com as manoplas em punho, mordi a “WOLF”. Quando via a foto não tive dúvida: essa é a capa do álbum e se chamará apenas “Wolf”. Em outubro de 2023, fizemos outra sessão de gravação (sempre no estúdio do Gabriel Yang) para que eu decidisse os takes finais, quais músicas iriam entrar no álbum e quais não iriam. Mas o tempo foi passando e a dificuldades em manter a carreira musical foi aumentando e, com isso, bateu um certo desânimo. Isso foi o principal fator que me fez demorar tanto para finalizar tudo. Faltavam apenas os arranjos e os overdubs dos sopros, além do baixo acústico de “Last Night is Burning in my Eyes”. Muitas já estavam finalizadas e até lançadas como single em 2023, como forma de preparar o lançamento do álbum. O que se tornou uma estratégia completamente fora do timing de lançamento. Mas isso foi superado, e estamos aqui de disco novo.

Discografia – Queria saber da sua formação como músico, tanto tocando guitarra quanto cantando.
Roberto Lessa – Sou guitarrista autodidata, mas quando decidi tocar Blues, no fim dos anos 1990, começo dos 2000, tive lições vitais com o Ken Boumont. Na época ele morava em Fortaleza e tocava na Matutaia. Era alguém que tinha bebido diretamente na fonte, em sua cidade natal: San Diego, Califórnia. Depois disso, estive sempre cercado das revistas de guitarra, vídeo-aulas, tirando músicas a partir de audição. Tudo voltado ao Blues. Mas há uma coisa que sempre me ajudou: desde criança que ouço muita música e sou ligado à música. Comecei a ouvir muito Blues de todos os estilos e épocas. Fui elegendo meus heróis na guitarra e tentando captar suas maneiras de tocar. Ouvir música é também estudar música, assim eu penso. Mas passei um bom tempo cantando sem estudar, o que não fazia muito sentido, já que era guitarrista e vocalista da Blues Label. Vivia tocando guitarra, vendo as lições, mas negligenciava o canto. Até que comecei a ter aulas de canto com o Gabriel Yang e a coisa mudou muito. E creio que mudou para melhor.

Discografia – O disco "12", da Blues Label era cantado em português, mas sua estreia solo é toda cantada em inglês. Qual a diferença de cantar blues e rock em português ou inglês?
Roberto Lessa – A maioria das músicas era do Léo, e ele sempre compõe em português. Há três composições minhas no disco, uma em inglês. Inicialmente, achava que cantar em inglês era uma melhor estratégia para vingar no mercado da música tocando Blues, mas isso é um argumento que não se sustenta. A questão é mais complexa. Eu componho mais em inglês porque há um belo tempo vivo uma imersão no idioma britânico. A partir dessa vivência, as ideias vão surgindo e eu vou compondo as letras. Já compus letras a partir de diálogos de séries, de lição de inglês, da fala do B.B. King em um documentário. Sinceramente, hoje eu penso que o idioma não é um fator determinante. O importante é o domínio da linguagem que a sua música pede. Isso sim é o que é mais importante. Tanto faz se a letra é em inglês, português ou coreano.

Discografia – Já vem de, pelo menos, 25 anos uma cena de músicos em Fortaleza ligados ao blues. Você faz parte dessa cena, assim como o Artur Menezes, Felipe Cazaux e Marília Lima. Você acha que o blues que se faz aqui já tem características próprias ou ainda é muito ligado à matriz desse estilo, que são os mestres norte-americanos?
Roberto Lessa – Na minha concepção, as composições são resultado de toda a história do autor. Nenhum dos citados, e arrisco a dizer que nenhum músico da cena Blues de Fortaleza, tem vivência profunda na matriz do Blues. Hoje o Artur vive em Los Angeles, Felipe mesmo morou uns três meses em Chicago, mas eu falo de todo o contexto que influencia na formação, não do músico, mas da pessoa. Não há como tirar de nossas composições a nossa cultura. A era temporal em que vivemos; nossa condição social, racial e financeira; a história do país, da região; as músicas que ouvimos nos rádios, os discos que compramos. Enfim, são tantos fatores que trazemos em nossa experiência de vida que entendo ser muito difícil compor com características estrangeiras. Mesmo cantando em inglês, o que fazemos tem uma característica própria, sim. E também, nenhum artista ou banda daqui tem como direcionamento a reprodução exata do blues que se faz ou se fez nos EUA, o que reforça a nossa singularidade.

Discografia – Assim como acontece em Guaramiranga, são vários festivais pelo Brasil dedicados aos jazz e o blues. Mesmo assim são estilos que seguem com uma fama de elitistas. De alguma forma, você acha que esses festivais ajudaram a popularizar esses estilos e aproxima-los do grande público?
Roberto Lessa – É bastante curioso perceber a pecha de música elitista que colocam no Blues, visto que é uma música absurdamente popular em sua origem. O Blues nasceu do povo preto dos EUA, que vivia em condições precárias em vários aspectos. O Blues nasceu no gueto, nos inferninhos de Nova Orleans e Mississippi. De elite não tem nada. Mas, alguns fatores contribuíram para transformar isso: nos EUA, nos anos 1950/60, o folk Blues se transformou na trilha sonora de jovens brancos de uma elite intelectual. O público branco cresceu bastante quando o Blues passou a ser chamado de rock and roll, e isso também contribuiu com o elitismo. No Brasil, o Blues já chegou pelo rock, na ordem inversa da origem. Não houve decodificação de que o que o Elvis fazia era totalmente relacionado ao Blues. Até a dança. É muito estranho que no Brasil quase ninguém dança o blues. Blues é para dançar! Blues é corporal. A dança é intrínseca ao blues. Mas essa informação se perdeu na tradução, principalmente quando se começou a consumir o estilo musical Blues a partir do rock britânico. Aí que a dança se perdeu mesmo.

Discografia – O que você acha que falta para que essa aproximação seja maior ainda?
Roberto Lessa – Creio que para aproximar o blues do grande público é contar sua verdadeira história. Mostrar de onde o blues veio. Quem criou. Não foi Elvis, nem Led Zeppelin. Foi o povo preto nos EUA. É preciso quebrar paradigmas e mostrar a essência popular do blues, sua sensualidade, suas letras jocosas. Blues não é melancolia. Blues é festivo. Esse é um grande clichê equivocado que se propala aos quatro ventos. Popularizar o gênero é também ir além dos festivais, ir onde o povo está.

Discografia – Desde sua estreia como músico para cá, o que mais mudou na cena do blues?
Roberto Lessa – Cresceu, se desenvolveu, mas percebo que vivemos um momento de baixa. É difícil se apresentar tocando blues tanto em estabelecimentos privados como em iniciativas públicas. Até os grandes festivais reduziram as atrações de blues. Com isso, acaba surgindo poucos artistas novos com a identidade blues por aqui. Há 15 anos a Casa do Blues conseguia promover eventos muito concorridos, como o show no Parque Adahil Barreto, onde cinco bandas/artistas tocaram para um grande público tocando suas próprias músicas. Hoje, não conseguimos promover esses eventos. Mas eu sigo na luta.

Discografia – O que mais você aprendeu nesses anos fazendo música em Fortaleza?
Roberto Lessa – Aprendi que o negócio música (e não somente aqui) é massacrante e é profundamente frustrante. É um negócio que, como muitos outros, segue a lógica do dinheiro e poder, em menor ou maior grau, assim seja o tamanho do contratante. Em Fortaleza há algumas bizarrices, como contratar uma atração para apresentação ao vivo mas tratar como se fosse música ambiente. Exigem que os equipamentos e concertos sejam meros simulacros. E o músico vai se adaptando ao negócio por sobrevivência. Mas por mais que seja tão frustrante, há júbilos que nenhum dinheiro ou poder pode pagar, e eu aprendi que as alegrias da música se consegue quando você realizar a própria arte. Dá trabalho, é cansativo, mas é regozijante.

Capa do disco 'Wolf', de Roberto Lessa
Capa do disco 'Wolf', de Roberto Lessa

Gritando com vontade

Das muitas vezes que vi Roberto Lessa no palco me chamou atenção sua entrega para a música, seu canto meio de lado, com um certo deboche, e uma presença de palco contida e eficiente. Como guitarrista, ele não desperdiça notas nem está interessado em malabarismos. O resultado de cada nota, a beleza do som é o que interessa. Fora dos palcos, me chama atenção sua inteligência aguçada, sua melancolia por um reconhecimento para o som que ama e seu conhecimento enciclopédico sobre música. Em grande parte, esse conhecimento é dedicado ao blues. De certa forma, Roberto transporta essa personalidade para "Wolf", seu, enfim, álbum de estreia. São apenas sete faixas, cada uma trazendo uma forma diferente de fazer blues. Mas a ideia não é ser didático ou mostrar tudo que ele pode. A cada mudança de clima, as ideias vão se encaixando e formando um todo coerente. "Mr. Engineer" abre o disco com um som que lembra dezenas de bandas indies dos anos 1990, até que ganha corpo com gaita (Diogo Farias) e vocais (Fernanda Fialho) e se transforma na faixa mais pra cima do disco. Reduzindo a velocidade, tem a funkeada "No room for innocence", que poderia estar num disco de Joe Cocker, e "In my grave", com um hipnotizante duelo de guitarras e sopros (Ferreira Junior). "How long is forever" eleva mais a temperatura e traz aquele canto "meio de lado" que falei antes. "Last night is burning my eyes" (parceria com JB Junior) tem algo de Led Zeppelin. A instrumental "Santana" tem ginga latina, uma elegante cama de teclado Hamond (Alberto Sabella), mas pouco lembra o blueseiro mexicano de mesmo nome. "I lived in the city" fecha o álbum em alto astral, com Marcelo 2Hum Holanda guiando tudo na bateria. Com mais 20 anos de carreira profissional dedicados ao blues, Roberto acumulou experiência para fazer um disco enxuto, direto, diversificado e acessível. Não vai faltar quem pense que ele demorou para essa estreia. Mas, a julgar pelo resultado, "Wolf" chega no tempo certo.

Foto do Marcos Sampaio

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