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Bodocó
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

Bodocó

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Tipo Crônica

Nasci no último ano da década em que Luiz Gonzaga (1912 - 1989) se consagrou em todo o Brasil como o "Rei do Baião", a década de 1950. Os sons do sertão, a sonoridade nordestina e a voz de alma poética da região confundiam-se nos ares de Independência/CE com a obra do grande artista pernambucano. Aprendi a cantar esse repertório ouvindo rádio, e suas ondas estavam por todo lugar.

O que as letras desse cancioneiro diziam era o que eu tinha a dizer, mesmo sem saber claramente o que cada palavra significava. Uma dessas músicas que eu gostava de cantarolar falava de Bodocó. Na minha cabeça de criança, Bodocó deveria ser uma espécie de alforge, uma vez que era citada ao lado de 'malota', 'saco' e outros recipientes utilizados para viagem em lombo de animal.

Tempos depois, vi em uma rua de Fortaleza um carro com a placa de Bodocó/PE. Lembrei-me imediatamente da música: "Quando eu vim do sertão / seu moço, do meu Bodocó / A malota era um saco / e o cadeado era um nó". Foi, então, que me dei conta de que Bodocó era um dos lugares de onde emigraram muitas pessoas forçadas pela indústria da seca. Daí o nome Pau-de-Arara (Luiz Gonzaga / Guio de Moraes) dessa obra de 1952.

Mais tantos anos se passaram, e, em uma das diversas viagens que fizemos de carro pelo Nordeste, durante a infância dos nossos filhos, recordei-me dessa história ao ver a placa Bodocó na BR-122. Estávamos indo de Ouricuri para Exu, terra natal de Luiz Gonzaga, onde fica o Museu do Gonzagão, instituição que, mesmo com suas insuficiências, preserva uma significativa coleção de peças originais do mestre Lua.

Entramos na cidade e estava tudo muito calmo naquele mês de julho de 2011, de céu nublado e dia agradável, mesmo com o relógio da igreja de São José marcando 12:00. A praça da matriz nos surpreendeu de tão limpa e com seu jardim bem cuidado. Sentamo-nos em um dos bancos, pintados de verde claro, compondo a variação de tons de verde daquele logradouro. Pois ali estávamos no centro de Bodocó.

Depois de observarem os arredores em silêncio, os meninos viraram-se para mim com uma provocação espirituosa: "Pai, Bodocó é maior do que Independência"; como se quisessem dizer que eu não tinha motivo para um dia ter confundido aquele lugar com uma bolsa de pertences de viajantes. Sem esperar que as crianças compreendam tudo o que se diz, falei para eles que, ao cantar Bodocó, Gonzaga estava cantando todos os lugares com uma história comum de retirantes.

Comentei que o título daquela música é Pau-de-Arara porque nos anos de estiagem muitos nordestinos deixavam sua terra para procurar sobrevivência em outras regiões, e que o transporte utilizado para isso eram caminhões com tábuas improvisadas na carroceria, fazendo as vezes de assento, o que se assemelhava aos poleiros com que se carregavam araras, papagaios e periquitos, aves que fazem muito barulho, o que também lembrava o falatório das pessoas em retirada.

Contei que quando eu tinha a idade deles vi esses paus-de-arara saindo de Independência carregados de passageiros. Muitas dessas pessoas levavam consigo apenas a cultura, e isso estava dito com muita força naquela música que tinha Bodocó como símbolo: "Trouxe um triângulo, no matolão / Trouxe um gonguê, no matolão / Trouxe um zabumba dentro do matolão / Xote, maracatu e baião / Tudo isso eu trouxe no meu matolão".

Os dois começaram a brincar no chão de lajotas de pedra cariri que pavimentam a praça e, olhando para eles, ouvi internamente: "Quando eu vim do sertão, seu moço / do meu Bodocó / A malota era um saco e o cadeado era um nó". Senti-me muito contente por estar presencialmente em Bodocó, podendo ver também os meus filhos naquele lugar que tanta riqueza deu ao meu imaginário, e que eu acabara de legar a eles.

Foto do Flávio Paiva

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