Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Duas canções me inspiraram a compor a música Escarlate, um sotaque de boi apaixonado, gravado originalmente ao som de matraca, tambor-onça e pandeirão, solto pelos vastos campos do amar: o canto de roda Engenho de Flores, de Josias Sobrinho, e a toada Boi de Lágrimas, de Raimundo Makarra (1953 - 2019), dois clássicos do cancioneiro maranhense.
Engenho de Flores aflorou em mim com o sentimento de que luzes de amorosidade podem ser antídotos poderosos contra a mentalidade escravocrata ainda fortemente predominante no país, e Boi de Lágrimas me fez refletir que, se boi também sente dor e chora, a saída é enfrentar contrários com brilho e clarim.
Gravada há 30 anos na voz inconfundível de Edmar Gonçalves como uma das doze faixas do Rolimã (Camerati, 1994), meu primeiro álbum de discografia de autor, Escarlate chega às plataformas de streaming de música com interpretação impecável da admirável cantora moçambicana Lenna Bahule, que assina os arranjos de voz e a percussão corporal.
Em uma interação global Sul-Sul, Moçambique e Brasil, a nova modelagem de Escarlate foi concebida em Maputo e registrada em São Paulo com alaúde e cigarbox de André Hosoi e pandeirão, maracá, sementes de unha de cabra e pratos de André Magalhães (também responsável pela mixagem) e masterização de Homero Lotito. Tudo em um campo de sentido poético-sonoro afro-brasileiro.
A voz delicada e segura de Lenna Bahule traça o fluxo de Escarlate como se fosse um boi nômade a deixar rastros ampliando as veredas da música independente. Combinando sonoridades e pegadas rítmicas brasileiras e moçambicanas, ela conduz a melodia entre pausas e jogos fonéticos até introduzir a percussão corporal por meio da qual chama ao centro do terreiro o boi da apartação.
Para a imagem da capa escolhi um enfeitado e faceiro boizinho de mão que ganhei de presente do sempre querido percussionista maranhense Papete (1947 - 2016). Meu filho Lucas Paiva fez a foto e a Nathália Cardoso criou a arte do single. Tudo com muito carinho e capricho, na organicidade da produção comunitária independente.
O boi de língua cortada, protagonista em Escarlate, é uma representação da voz proibida dos povos de África escravizados na América; um esforço de diálogo continental de integração e reparação histórica. Trata-se de uma contraposição simbólica à amputação da língua do boi no auto colonial, onde, nem mesmo em caso de desejo de gravidez, o trabalhador deve mexer nos bens do patrão.
A música Escarlate conta a história de um belo e valente boi preto, de alma livre, que, apesar de desterrado, se joga com sua cultura e fé na construção de um novo lugar para viver, abraçando o território que passa a habitar. Contudo, a hostilidade das circunstâncias impede a realização do seu desejo de ser amado, desprezando o amor que ele tinha para dar. Desiludido, ele foge e, como fugitivo, perde também o direito de usufruir da alegria coletiva.
Um exemplo desse tipo de personagem fabuloso, criado pela sabedoria popular para dar vida à situação mórbida a que eram submetidas as pessoas escravizadas no Brasil, é o Boi Mandingueiro. Com pelagem preta aveludada, esse ser, que escapou dos domínios dos senhores e que não pôde ser capturado, foi acusado de enfeitiçar quem tinha vontade de ser livre. São, portanto, muitos os conectivos cruzados por onde se pode escutar Escarlate, com o agradável corpo-canto de Lenna Bahule e sua trama de interculturalidade.
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