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Na África das caravanas
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

Na África das caravanas

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A história do continente africano é comumente voltada para o colonialismo e o escravismo, para o tráfico transatlântico e a diáspora, e normalmente com base na instrumentalização do conhecimento feita por matrizes europeias. É como se a pluralidade e a diversidade de povos da África se reduzissem à condição de vítimas, sem contribuições próprias para a humanidade.

Com o avanço das práticas decoloniais, o processo de revisão historiográfica africana evolui à medida do possível. Pesquisadores e autores comprometidos com essa empreitada aproximam-se mais e mais de eventos, fatos e vestígios que embasam novas análises e interpretações a respeito da realidade e dos sentidos atribuídos a si e ao mundo pelas coletividades daquele continente.

Em 2024, destaco com essa inteireza o livro "Antigas sociedades da África Negra" (Contexto), do professor José Rivair Macedo, do Departamento de História da UFRGS, que trabalha com diversos estudos sobre as regiões do Sahel (localizada entre o extremo sul do deserto do Saara e a savana) e da bacia do rio Níger (que abrange deserto, savana e floresta tropical), na África Ocidental, tendo como referência os períodos históricos entre os séculos XIII e XVI, quando a Europa ainda estava na Idade Média (sécs. V ao XV).

Em seu recorte espacial e temporal, a obra de Rivair cumpre notavelmente a difícil tarefa de contribuir para a elucidação de um passado relevante ao soerguimento africano na dinâmica geopolítica mundial. O autor mostra como, ao dominarem o noroeste africano (Magrebe), os árabes passaram a introduzir o camelo e o comércio em caravanas de mercadorias, pessoas, crenças, ideias, visões, estilos e culturas nessa região, que chamaram de Terra dos Negros (Bilad al-Sudan).

O uso da expressão África Negra no título é o único ponto que achei contraditório no livro, por me parecer um reforço inadvertido da clivagem racial e de cor que a obra tão bem combate. Não é pela presença categórica de pretos na África subsaariana que as diferentes culturas de toda a parte do continente ao sul do Saara devem ter suas concepções multiétnicas e multilinguísticas planificadas por terminologias ideológicas estigmatizantes, criadas para facilitar espoliações de toda ordem.

De forma agradável e consistente, o livro traz sutilezas boas de observar. No lugar de 'islamização da África', o autor realça a importância de se usar 'africanização do islã'. No final das contas, foi Sundiata Keita (1190 - 1255) o unificador dos povos Mandinga, quem procurou o códice islâmico, com o qual instituiu as bases de um Estado formado por povos aliados e conquistados (séc. XIII), que ficou conhecido como Império do Mali.

A denominação de 'império' em referência ao sistema de governo dos Mansas Mandinga é outra ênfase dada pelo autor, por não considerar os parâmetros do exercício do poder desses governantes com os dos reis e imperadores europeus. Por força de fontes arabófonas, os mansas são chamados de sultão, e, em decorrência de categorias mentais eurófonas, imperador.

O professor José Rivair revela como foram estabelecidas as negações de valores da oralidade como matriz cognitiva, da relação das pessoas com seres incorpóreos e dos saberes tradicionais nas sociedades definidas no escopo. Mostra também como deu-se ali a amalgama dos organismos socioculturais e políticos em diferentes concepções cosmogônicas, seus duplos espirituais e seus princípios sobre escravidão. Essencial!

 

Foto do Flávio Paiva

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