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Vejam vocês... é Vital Farias
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

Vejam vocês... é Vital Farias

A realidade carece de arte como proteção, para não definhar nos simulacros de poder
Tipo Crônica
Vital Farias é compositor de
Foto: Reprodução/ Instagram Vital Farias é compositor de ""Ai, Que Saudade D'Ocê"

Um dos mais louváveis compositores brasileiros do século XX, Vital Farias (1943 - 2025) é autor de uma música sofisticada e permeada pelo poder da palavra. Brabo, impulsivo, sensível, sublime e dotado de imaginação criadora própria, ele uniu forma e conteúdo em versos, melodias e acordes de poética e estilo singulares.

Artista imprescindível, ele segue em sua obra, como uma semente boa, que se guarda para replantar no tempo da arte que brota pelo frescor da organicidade cultural. Músicas como as de Vital Farias dão às pessoas a oportunidade de experienciar percepções e desejos a partir de si, independentemente de suportes persuasivos de audição.

O cantador entoou a sabedoria das matas quando, ao antever o triste destino amazônico, advertiu: "O que se corta em segundos gasta tempo pra vingar". E apelou aos quatro ventos, em sua cantiga de índio que perdeu a taba: "Deixe o índio no seu canto [...] Deixe o peixe, deixe o rio / Que o rio é um fio de inspiração".

A condição feminina está presente na obra de Vital Farias como uma urgente busca de sentido e participação: "Faca que não corta / Mulher semimorta / Sem cara, sem fala, sem bala, sem hora, sem ala-á". No enfrentamento da desrazão, ele canta: "Veja você, arco-íris já mudou de cor / Uma rosa nunca mais desabrochou / E eu não quero ver você / Com esse gosto de sabão na boca". E, no meio de tudo, a esperança: "Essa mulher brasileira / esse verde que ainda sonha".

O canto de Vital mescla amargo e doçura. De um lado, a escassez que produz distâncias: "Eu chorando pela estrada / Mas o que eu posso fazer / Trabalhar é minha sina / Eu gosto mesmo é d'ocê". De outro lado, as vulnerabilidades do amor de mercado: "Vou comprar dois automóveis / um pra mim outro pra ti / vou comprar mais dois imóveis / um pra mim outro pra ti / Mas isso não constrói nada / porque o que você precisa / não se pode comprar".

Sutilezas do amor de juventude aparecem na música de Vital Farias com muita maestria: "Cantiga de moça / Lá do cercado / Que canta a fauna e a flora / E ninguém ignora / Se ela quer brotar". Em outros versos, ele usa a metáfora da água que mente quando quer matar a sede: "Diz pra mãe que eu fui pro açude / Fui pescar um peixe / Isso eu num fui não / Tava era com um namorado / Pra alegria e festa / Do meu coração".

Questões sociais de violência e repressão estão no âmago do seu cantar: "Severinin todo dia lavrava a terra macia / E terra lavrada é poesia [...] Depois de tudo plantado / Fazendeiro pede pra Severinin desocupar"; "Toda boca que eu conheço está calada / Toda boca que eu conheço está selada / Toda boca que eu conheço só me fala / Em laticínios, e bombons de chocolate".

A realidade carece de arte como proteção, para não definhar nos simulacros de poder. Vital intuía: "E ninguém nem percebia / Que o real e a fantasia se separam no final". Enquanto considerado útil, foi incensado por uma militância apegada à unanimidade. Mas o menestrel de Taperoá não estava para dissimulações com relação a desvios de rotas dos que apoiara, e não foi perdoado por isso, passando a ser atacado sistematicamente.

Por não ser domável, rebelou-se e atirou no escuro contra essa cruviana que o perseguia na madrugada política brasileira. O revide de sua alma sertaneja foi tratado superficialmente por analistas apenas como contradição do artista. Quando a política é reduzida à luta pelo poder, a luz some para quem só consegue enxergar lâmpadas. É certo que ninguém vê mesmo a luz, mas é desarrazoado negar o que clareia. Vejam vocês...

 


Foto do Flávio Paiva

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