
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Os ruídos afetivos que rondam nossas memórias estão sempre prontos para virar recordações. Tudo o que se mexe abre passagem para vibrações que nos transportam a circunstâncias geradoras de sentimentos e emoções. Esse ponto de comunicação entre vigília e reminiscência pode ser intensificado na experiência combinada de leitura e audição.
O livro e o álbum "Ruidagem, a garagem das sete lembranças" (Mireveja, 2025), dos músicos Edson Natale e Paulo Brandão, formam um nodo de "ruídos afetivos, memória e música". A parte literária reúne 13 depoimentos de histórias sonoras, e a musical, cerca de um milheiro de ruídos colhidos no Brasil e no Exterior e condensados em sete faixas disponíveis em plataformas de música digital.
A leitura dos relatos vai baixando da nossa memória situações de padrões semelhantes ou mesmo de associações aleatórias. Cada pessoa que entra nessa ruidagem literária e musical pode puxar os seus próprios casos. Foi assim que algumas lembranças saltaram diante de mim.
Os sons dos navios que apitavam no mar de Santos, ressoando no quarto em que a cantora Natália Barros dormia quando criança, entraram na mesma frequência do canto em duo das casacas-de-couro da minha infância no sertão dos Inhamuns; uma paisagem sonora tão marcante que um dia registrei com a ajuda do meu pai e incluí na música "Baião na Manchete" (Rolimã, 1994), gravada por Marta Aurélia.
Esse mesmo vínculo de litoral e sertão voltou a mim nas referências de Paulo Brandão ao contínuo das ondas do mar quebrando na areia, tendo ou não quem as escute. Também me foi significativo o trecho em que ele descreve a recepção de ruídos e vozes em línguas irreconhecíveis captadas no rádio Mullard, pois uma das minhas brincadeiras favoritas era essa conexão de ruidagem, feita no valvulado Semp, que ainda hoje guardo como relíquia.
Na passagem em que o arqueólogo Gabriel Natal alude os ecos de indignação que alcançaram o mundo a partir da Praça Tahrir, no Cairo, o conectivo que se formou em mim foi o do envio, tempos atrás, a um amigo que estudava no Exterior, de sons da Praça do Ferreira, em Fortaleza, com as batidas do relógio, o burburinho do ir e vir e as vozes de vendedores de borracha para panela de pressão e dos pregadores de rua, numa demonstração de aleatoriedade do fluxo das lembranças.
Em sua transmissão de ensinamentos do povo Guarani M´bya, Daniel Iberê reforça que "o silêncio (...) é a extensão da palavra (...), a sublimação de tudo o que se pode dizer sem a voz humana". Aqui, senti a propagação do princípio que rege os sons que saltam aos meus ouvidos internos pela força do silêncio, uma simbiose que me levou a fazer trilha musical como parte da narrativa da minha produção literária.
Lembrei-me, ainda, do escritor espanhol Jacobo Roda, que lançou recentemente a novela "La prisión trazada" (ReaDuck, 2025), em que desenvolveu oito canções durante o processo de escrita. Ele conta que escrevia sempre ouvindo músicas de terceiros, até que decidiu experimentar fazer composições próprias para os momentos-chave do livro e disponibilizá-las nas plataformas.
Ler e ouvir "Ruidagem, a garagem das sete lembranças" tem esse caráter revolvedor de sonoridades afetivas, tocando em especial a quem gosta do movimento vibratório do som e do ser. Como diz o músico Parteum: "Gostar de música é equivalente a gostar de se conectar ao outro"; e como arrebata a cantora Anelis Assumpção: "A vida pode ser inaugural o tempo todo". E como pode!!!
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