Logo O POVO+
Os cravos de Dona Celeste
Foto de Hélio Leitão
clique para exibir bio do colunista

Advogado, pós-graduado em Processo Penal e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor). É professor do Centro Universitário Estácio/Ceará e da Universidade Sete de Setembro (Uni7). Fundador do escritório Hélio Leitão e Pragmácio Advogados

Os cravos de Dona Celeste

Agora, quando se dão os festejos em comemoração pelos 50 anos do vitorioso movimento revolucionário, o presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, em atitude inusitada, reconhece, o direito das ex-colônias à reparação pelos crimes cometidos pelo império português

Ao chegar ao restaurante em que trabalhava, ali nas imediações da praça Marquês de Pombal, centro de Lisboa, Celeste Caiero, então aos 40 anos de idade, deu com a cara na porta. Era o dia 25 de abril de 1974. A prudência recomendava que não funcionassem naquele dia - uma pena, pois por artes do destino era o dia mesmo em que completariam aniversário de um ano de funcionamento -, já que as ruas estavam tomadas por militares e civis. Uma certa e difusa revolução estava em marcha. Foi para o vinagre a simpática ideia de seu patrão de celebrar o feito com a distribuição de cravos vermelhos aos clientes. Talvez feliz pelo inesperado dia de folga, e como os cravos acabariam por murchar, sem serventia outra, Celeste sobraça um punhado deles e retoma o caminho de casa, em marcha batida.

A meio caminho é abordada por um soldado, que lhe pede cigarros. Quem sabe fosse apenas uma investida, um pretexto para aproximar-se da mulher. Como não fumasse, ofereceu-lhe um dos cravos, que o militar pôs no cano do fuzil levava ao ombro. Qual um adereço, uma insígnia de paz. E outro cravo e mais outro aos militares à volta. Em pouco tempo o gesto se multiplicou por todo o país, transformando-se no símbolo do movimento que deitou por terra uma das mais longevas ditaduras do planeta, o Estado Novo, regime de força implantado em 1933 por António de Oliveira Salazar, naquela altura conduzido por seu herdeiro político, o professor de direito administrativo Marcello Caetano.

Deflagrado por militares de baixa patente que formavam o MFA - Movimento das Forças Armadas, os chamados "Capitães de Abril", a revolta encontrou imediata adesão das massas populares, exauridas por décadas de garroteamento das liberdades civis, pelas violências de sua a polícia política, a temida PIDE - Polícia Internacional e de Defesa do Estado, pela política imperialista portuguesa, que redundou na morte de milhares de compatriotas nas guerras coloniais travadas na defesa do que se chamava à época, não sem alguma pompa, o Ultramar Português.

A "Revolução dos Cravos", sem o disparo de um tiro nem derramamento de sangue, representou o retorno do país ibérico ao contexto das democracias europeias, reacendendo no seio daquela gente, de modo até um tanto romântico, como românticas e libertárias devem ser as autênticas revoluções populares, a chama dos valores próprios ao humanismo e ao espírito democrático.

Tão perenes que agora, quando se dão os festejos em comemoração pelos 50 anos do vitorioso movimento revolucionário, o presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, em atitude inusitada, reconhece, o direito das ex-colônias, Brasil inclusive, à reparação pelos crimes cometidos pelo império português.

Quando o tema é reparação histórica, das palavras à ação vai, não sejamos ingênuos, um longo caminho. É sempre assim. Anima, todavia, saber que passadas estas cinco décadas os cravos de dona Celeste não feneceram. Antes, seguem vivos e exuberantes, irradiando esperança na construção cotidiana de um mundo mais justo, mais fraterno.

 

Foto do Hélio Leitão

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?