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Ainda resta esperança
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Advogado, pós-graduado em Processo Penal e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor). É professor do Centro Universitário Estácio/Ceará e da Universidade Sete de Setembro (Uni7). Fundador do escritório Hélio Leitão e Pragmácio Advogados

Ainda resta esperança

Estava ali para, no seu dizer, acertar as contas. Pagou em dinheiro pelo livro involuntariamente subtraído com a naturalidade das pessoas honestas e saiu a passos lentos, levando o filho pela mão

Numa sexta-feira como outra qualquer, fim de expediente, rumo de casa, lembro de parar em um dos tantos shopping centers da cidade, um daqueles centro de compras - assim chamados pelos defensores intransigentes da língua de Camões, avessos a estrangeirismos - espaços frios e impessoais para onde foram banidas as poucas livrarias que ainda resistem nesta cidade de tão escassos ledores. Costumo presentear meus amigos com livros e naquela noite seria a festa de aniversário de uma amiga de longa data, a que não podia faltar. Não queria chegar de mãos abanando.

Entregue à difícil tarefa de escolher qual livro comprar - atividade laboriosa e sofrida que sempre oscila da perscrutação dos gostos e interesses do aniversariante à contenção dos meus ímpetos, muito próprios, de comprar todo o estoque para deleite pessoal, entrevejo quando uma senhora já idosa, vestida de modo muito simples, adentra à livraria em companhia de um jovem de não mais que vinte cinco anos de idade, com evidentes e, ao que pareceu então, graves limitações físicas e mentais.

Não tenho o hábito de xeretar a vida de quem quer que seja, não disponho de tempo para isso, nem interesse, mas o diálogo que se seguiu entre a senhora que trazia o jovem pela mão e a funcionária da livraria, que ouvi meio por acaso, despertou a minha atenção, feriu-me mesmo a sensibilidade. A senhora informava que dias antes estivera ali em companhia do filho - soube naquele instante ser o rapaz seu filho, e que ele havia posto então em sua bolsa, sem que ela houvesse se apercebido, um pequeno livro. Estava ali para, no seu dizer, acertar as contas. Pagou em dinheiro pelo livro involuntariamente subtraído com a naturalidade das pessoas honestas e saiu a passos lentos, levando o filho pela mão.

Entre incrédulo e emocionado com a cena, continuei a minha busca. Acabei me decidindo por levar "O vento sabe o meu nome", um bom romance da escritora chilena, nascida em terras peruanas, Isabel Allende, que há pouco havia lido. Uma comovente história que se inicia nos alvores da ascensão do nazi-fascismo na Europa, atravessando todo o século XX até chegar aos nossos dias. Verdadeira lição de resiliência, de esperança, da imensa capacidade que os pais têm de sacrificar-se por seus filhos. Espero que a aniversariante tenha gostado do presente - até agora não me falou nada. O enredo tem um pouco do que eu tinha acabado de testemunhar, a humanidade no que ela tem de melhor, fazendo com que a gente continue a crer e ter fé na vida, coisa nem sempre fácil nestes e em outros tempos. E pensar que tudo isso aconteceu em uma sexta-feira como outra qualquer, quando eu, às pressas, queria comprar um presente.

Dizem os que me são próximos, e a alguns poucos mostro os meus artigos antes de dá-los a público, quando, como que por encanto, eles deixam de nos pertencer, que ando meio sensível ultimamente. E que este texto seria um tanto piegas, fugindo eu dos temas habituais e do meu estilo, de uso bem-humorado, quando não um tanto cáustico. Pensando bem, acho que eles têm razão.

 

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