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Necessário, atual e urgente
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

Necessário, atual e urgente

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Tipo Crônica

Leio que tal obra ou qual filme é não apenas atual, mas também necessário, de modo a enfatizar uma ideia já presumida quando se diz que um produto qualquer interpela o presente de muitas maneiras, ou seja, que é contemporâneo, naquele sentido atribuído por Agamben.

O parafuso começa a dar mais uma volta, porém, quando, além de atual e necessário, o livro é também urgente – ou o filme, ou o espetáculo, ou aquele comentário certeiro na rede social e por aí vai –, o que faz de imediato acender um alerta laranja, que começa a piscar intermitentemente, produzindo apreensão e algum grau de histeria tendo como música de fundo um zumbido crescente.

Ora, não bastassem a atualidade, predicado já de bom tamanho, e a necessidade, que dispensa comentários, visto que se impõe por si, havia de sobra essa urgência superlativa que desautorizava acréscimos, validada unicamente numa tautologia: era urgente porque se tratava de uma urgência, e a urgência, por sua vez, amparava-se na natureza explicitamente urgente da matéria em questão.

Daí em diante, notei como que uma pandemia (os mais antigos dirão “coqueluche”) de obras cuja elaboração combinava, com mais ou menos perícia, os três elementos (necessário, atual e urgente), variando apenas na posição que performavam no trinômio – ora mais atual que urgente, ora mais necessária que atual, ora mais urgente que atual ou necessária.

O suprassumo, por certo, é aquela que logra açambarcar os três adjetivos numa tacada apenas, feito não muito raro de se encontrar em qualquer várzea da internet, onde tudo é um rio.

A ordem, como se vê, não importava, desde que um dos atributos dessa trinca se constituísse como elemento central da obra, cuja qualidade talvez não fosse tão relevante assim. Em alguns casos, era mesmo vivamente recomendável que não correspondesse a certos regimes estéticos (eram francamente ruins), desviando-se dos padrões e colhendo os louros unicamente por destoarem, como esses filmes B que, deliberadamente mal abacados, findam por receberem o qualificativo de “clássico”.

Mas o que é o clássico, já se perguntava Calvino, certo de que o errado de hoje pavimenta a certeza de amanhã. Assim, o resultado era uma equação cuja derivada as tornava incontornáveis, fazendo-as virais e onipresentes em todas as plataformas, onde assumiam de pronto o caráter de verdade autodemonstrável ou de milagre que se autorrealizava diante de uma audiência predisposta a atestar, em corpo virtualmente presente, o truque da transubstanciação.

De tão banal, no entanto, essa santíssima trindade da retórica do gosto logo se esvaziou de sua potência – esta, por seu turno, já totalmente desossada pelo uso sistemático e sem critérios, convertida no brigadeiro vernacular do progressismo de internet.

Impotente toda potência e secularizado o miraculoso de uma obra que é simultaneamente urgente, necessária e atual, exatamente como o pai, o filho e o espírito santo, restou tão somente o pecado de cometer obras menores: nem atuais nem necessárias, tampouco urgentes.

Foto do Henrique Araújo

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