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Pedagogia do remendo
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

Pedagogia do remendo

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Tipo Crônica

O cearense é, antes de tudo, um remendo. O nativo define-se não pelo que constrói, mas pelas gambiarras que maneja com habilidade particular. Feitas por nós, a Torre Eiffel não passaria de um ajuntamento de bambus e cola maluca e a ponte Rio-Niterói, um conjunto mambembe de tábuas atadas umas às outras por cadarços de sapatos - as pirâmides se transformariam em barro untado com manteiga da terra.

Nosso esporte é o improviso. Evitamos a solução definitiva como o beatífico senador evita o doce pecado da carne. Sempre que a alma local se vê confrontada com um impasse, a saída costumeira é recorrer ao paliativo, lugar de chegada de todo esforço.

Ao alencarino, eliminar por completo um problema implica necessariamente criar uma arenga maior ainda: afinal, o que faremos quando não houver mais nada para fazer?

Daí que o reparo final soe estapafúrdio e mesmo ontologicamente contraproducente. Interessa o gesto incompleto, a artesania do provisório, a engenharia do incerto, a arquitetura da lacuna e por aí vai.

Em nossa aldeia, estátuas recebem demãos de tinta acobreada, assumindo contornos de alegoria carnavalesca enquanto esperam que um reparo se faça de uma vez por todas. Erguidas com o esmero dos bêbados e o rigor dos descuidistas, passarelas bambeiam à passagem dos transeuntes numa BR-116 cuja precariedade já remonta a décadas.

E quando tudo leva a crer que o xampu finalmente acabou, tratamos de diluir os dois últimos dedos do líquido com um bocado d'água, fazendo a mistura render mais um mês, extraindo do volume morto mais uma porção da sua alma e nisso ganhando uma sobrevida econômica plenamente justificada pelo escasso.

A impressão é que, em nossa configuração genotípica, há apenas um gene dominante: o que responde pelo "puxadinho" e pela certeza de que, entre a negligência moralmente condenável e a resolução autocelebratória, há uma estrada intermediária que fica salomonicamente a meio caminho do não fazer e do fazer.

Em contato com pregos atravessados na chinela japonesa, a palha de aço na ponta da antena ou a tenda de lona recepcionando turistas no aeroporto, por exemplo, o gentio suspira, extasiado.

Diante da obra inacabada, do aquário jamais concluído, do tijolo mal assentado e da reforma pela metade, insufla o peito e, como um renascentista desgarrado a quem a natureza houvesse concedido uma sobrevida noutro século, convoca: "Parla!".

Somos assim, uma nação mezzo guéri-guéri, mezzo ameríndia. Se podemos remendar, não perdemos tempo com medidas drásticas. Se o problema requer atenção especial, caprichamos no bandaid, fazendo do precário o fixo, instaurando a mobilidade como marca desse espírito arredio ao arrematado.

E se julgamos que o dispêndio de energia na tarefa é excessivo, rebolamos no mato, destino final do descartável e do trabalhoso, como qualquer canteiro de rua ou avenida é prova inconteste.

Foto do Henrique Araújo

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