Logo O POVO+
Ética do binário
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

Ética do binário

.
Tipo Notícia

O cearense é um tipo massa e paia ao mesmo tempo. Vaia o sol num dia de chuva: é massa. Ri de tudo e na hora errada: é paia. Faz da gambiarra um passaporte para a felicidade. É massa. Prefere o remendo à solução. É paia. Adora história de menino pobre que passou no vestibular mais difícil da cidade. É massa. Gosta de se ufanar dos gênios que produz em escala industrial na rede privada. É paia.

Divide a sombra do poste com outra pessoa. É massa. Corta as árvores. É paia. Segura a porta do elevador pra quem está chegando. É massa. Estaciona na vaga do idoso. Paia. É asseado. Massa. Joga lixo pelo vidro do carro. Paia. Valoriza área verde. Massa. Curte um super prédio à beira mar. Paia.

O nativo orbita esse universo binário do massa/paia como posições antípodas entre as quais pendula ao sabor das circunstâncias. A gente é massa porque vocacionado à galhofa. Mas é paia porque odeia quando tem de segurar o riso, que, entre nós, é como uma espécie de frieira atávica, passada de geração para geração. Numa geografia adversa, é massa a predisposição à pilhéria, que acaba salvaguardando a saúde mental de muita gente. Ocorre que o excesso pode ter efeito contrário, e o que era massa fica paia.

Uma ida ao teatro ou ao cinema exemplifica. Se é pra chorar, rimos. Se é pra rir, rimos mais ainda. Se o instante impõe silêncio e gravidade, murmúrios de gracejo pipocam pelas beiradas da plateia. É mais forte que a gente, e isso é paia. É como se a realidade imediata fosse roteirizada por Rossicleia ou Tom Cavalcante. Nosso diretor de elenco é Tiririca. Nosso editor de som, Victor Hannover. E há um Sinfrônio contracenando no interior de cada um dos nascidos nas terras de Alencar.

Tudo porque o caráter do gentio é talhado nessa dubiedade. Hospitaleiros - massa. Mas linchadores de assaltante - paia. Receptivos, massa. Mas pródigos em desrespeitar regras mínimas de convivência. Paia. Rir da chuva caindo. Massa. Aterrar pra requalificar avenida. Paia.

É massa ter saída para quase todos os problemas. É paia quando todas as respostas são provisórias e precisam de outra demão de tinta pouco tempo depois. É massa ter orgulho da capacidade de invenção e da natureza obstinada do conterrâneo. É paia quando a gente ilustra isso com o exemplo dos cearenses que ocupam mais da metade das vagas nos institutos de ensino de São Paulo e Rio.

É massa quando festejamos a vitória de um aluno de escola pública que ganhou bolsa para estudar numa das melhores instituições de outro país. É paia quando ficamos deslumbrados com essa lógica VIP das turmas especiais de colégios particulares, a mesma que multiplica aprovados unicamente para estampar nas propagandas.

É massa ver tantas bicicletas na cidade. É paia um edifício espichando-se ao lado de outro e de mais outro. É massa estar feliz e não querer ir embora do lugar onde se vive - afinal, o Brasil passa férias aqui. Mas é paia não ir além do mero reconhecimento de uma beleza geográfica que se limita, quando muito, ao litoral.

É massa sublimar dificuldades com o riso, transformando queda em passo de dança. É paia quando o riso é convocado para recalcar os problemas e escondê-los debaixo do tapete.

 

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?