Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
De licença após o nascimento de minha segunda filha, acompanhei a catástrofe no Rio Grande do Sul de passagem, entre um choro e outro, pescando no sofá de casa ou na poltrona da maternidade, sem pregar o olho direito havia 72 horas.
Na TV do hospital, flashes de resgate, a mesma obsessão por registro da performance em tempos de customização da bondade e de self-service de um purismo de baixo teor calórico. Dos pets a outros bichos, toda ação esteve quase sempre à mercê de um obturador fotográfico capaz de oferecê-la imperativamente para consumo, enquadrando o instante não como momento preciso, mas como mercadoria cuja circulação carece de um circuito regido por duas coisas: imediaticidade e ampla audiência.
Até aí, nenhuma novidade, visto que o arroz com feijão das redes é esse faroeste do ego, uma micareta da autolouvação que se abate à esquerda e à direita, democratizando a hipocondria moral em doses salomônicas, de modo que o mero salvamento de um "caramelo" (que poderia se dar no privado, sem esse festival cinematográfico) logo se converte numa saga a la Indiana Jones, com direito a trilha épica de fundo dramatizando ainda mais a patuscada histriônica com ares celebratórios.
O novo, porém, foi essa superposição entre encenação do bem em meio a um evento climático de grande magnitude, talvez um divisor de águas no Brasil (sem trocadilhos), tudo isso operando como elemento deflagrador de uma espécie de bolsonarismo "reloaded", ou seja, uma versão hibridizada com um anarcocapitalismo tropicalizado e disposto a dobrar a aposta pela undécima vez.
As fake news em profusão, a exemplo do que mostrou um grupo de pesquisa da USP, provam que o que se vê no Sul neste momento é já uma outra volta do parafuso na disputa política: não somente a combinação de militarismo e uma ética evangélica de progresso material temperada por milicianismo e outras drogas mais pesadas.
Como naquele filme, o inimigo agora é outro: o próprio estado brasileiro. Mas não apenas o governo de turno - o centro das atenções é o ente de razão por si, nacional e estadual, a partir do qual a vida em sociedade se organiza, com divisão de tarefas, preservação de direitos e capacidade de reação diante de um imponderável cada vez mais concreto.
Qual o problema, então? É precisamente o deslocamento dos termos do debate, impondo a qualquer um que se dê ao trabalho de combater essa enxurrada de mentiras a se posicionar como defensor do Estado, uma noção antipática lida normalmente sob a chave do atraso e da ineficiência.
Eis, portanto, o objetivo da proliferação de mensagens antiestatais postas em rápida circulação e cuja abrangência inclui mesmo parceiros de golpes recentes, tais como as forças armadas: injetar vitalidade num movimento antidemocrático que se desgastara depois da inelegibilidade de sua representação carnal (Bolsonaro).
Trata-se de uma virada de mesa discursiva que, a julgar pela arena das plataformas e dos assuntos em torno dos quais se nota maior engajamento, vem prosperando aos poucos, realizando com sucesso uma espécie de lavagem retórica.
Sai o lema do "passar a boiada", responsável direto por episódios como o de Porto Alegre e outras cidades gaúchas arrasadas pela pilhagem do meio ambiente em grande escala.
Entra em cena a blitzkrieg "do povo pelo povo" em substituição ao verde-amarelismo (esgotado como símbolo), que abole o Estado como mediação, reinscrevendo o fascismo de antes numa nova embalagem.
Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página
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