Logo O POVO+
Apocalipse do streaming
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

Apocalipse do streaming

Tipo Crônica

Penso no que se tornaram as plataformas de streaming, ou seja, um novo tipo de TV a cabo cuja origem remonta ao mito fundacional da internet como uma experiência libertária. Afinal, ambas surgiram no horizonte de eventos como essa singularidade radicalmente transformadora a partir da qual o conhecimento global se democratizaria. Ledo engano.

Porque se deu precisamente o contrário, o que se vê hoje não se confunde com mais acesso, mas mais restrição e carestia, tabelamento inflacionado de preços de mensalidades e defasagem de tecnologias, algoritmos sem usabilidade à altura do que prometem e manipulação desabrida do cardápio de obras sem qualquer consulta ao cliente - filmes e séries que desaparecem do dia para a noite, removidos como se por força do acaso.

Matutei nisso no último domingo, já no finzinho da tarde, enquanto esperava placidamente a barrinha do download de um longa-metragem se completar, a exemplo do que faziam os fenícios. Tal como o cigarro, esse era um hábito largado havia anos e agora revivido, mais por necessidade que outra coisa.

Explico. Nesse apocalipse do modelo da ampla difusão a um custo baixíssimo, o Torrent voltou a se impor como desvio transgressivo no ecossistema tecnológico. A velha pirataria, dessa maneira, é reconvocada para ajudar a sabotar as cercaduras que o capitalismo digital institui ao consumo depois de prometer um Éden de liberdade para a compra - toda aquela infinidade de títulos por valor irrisório garantindo a estranha sensação de zapear por horas sem saber o que se desejava de fato.

Lembram-se dos termos que definiam a internet no seu alvorecer? Eu lembro: eram palavras sugestivas, coisas como "navegação", "surfar" etc., toda uma gramática esportiva e aventureira cujo sentido arrematava um universo sem restrições, sem bordas, sem hierarquias.

Foi também nesse diapasão que se registrou o começo da era das plataformas, que chega então ao seu fim com a promessa de fusão das grandes marcas, todas convergindo em marcha para um punhado, numa espécie de reaglutinação do dinheiro, reduzindo drasticamente a oferta e exorbitando suas cobranças.

Longe de gesto corriqueiro e fora de moda, portanto, gosto de imaginar que o ímpeto redescoberto de baixar filmes à moda antiga embute talvez a senha de uma mudança nos hábitos. Nela, o streaming se converteu no que antes representavam os canais exibidores cuja falência (inclusive a do cinema como linguagem e negócio) foi decretada pela ascensão daqueles novos modos de fruição.

Isso foi nos tempos áureos, com Netflix a R$ 14,90 e compartilhamento de contas. O cenário que se descortina neste momento, contudo, é o da atrofia da margem do usuário, num estreitamento de gostos (os mesmos produtos reempacotados em looping e vendidos a três por quatro em todos os meios) e de ferramenta - quem quer partilhar sua conta tem de pagar por isso.

Exatamente como a internet disruptiva dos anos de 1990 resultou nos empreendimentos antidemocráticos e na galvanização do conservadorismo de corte fascista, o streaming caminha para se transformar no avesso daquela promessa inaugural na qual ele se apresentava como um panfleto bíblico paradisíaco.

 

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?