Logo O POVO+
O apartamento
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

O apartamento

.
Tipo Crônica

Era alta, esguia, os gestos bem medidos, elegante mesmo para uma ocasião tão banal. Foi acompanhando a visita sem disfarçar o prazer que sentia com o zelo do lugar. "Eu fiz tudo sozinha, eu limpei cada lugar, eu preparava tudo, eu fazia a comida." Era ou ainda é representante de vendas, não sei.

Agora está decidida a morar com a mãe ou perto da mãe, também não tenho certeza. Uma casa do outro lado da cidade, num bairro mais de periferia, um lugar nem velho nem novo.

No final nos presenteou com meias para bebê. Fiquei comovido, admito, quis olhar nos seus olhos, mas tive receio do que veria se a fixasse mais tempo do que o necessário, talvez um assombro ou raiva ou um ímpeto mais violento de revelar cada detalhe de sua história naquele momento.

Minha esposa agradeceu, disse que as coisas dariam certo, sem necessidade de mais detalhes, numa linguagem quase cifrada entre mulheres. Falou nessa entonação que deixava claro que ela sabia de tudo que tinha acontecido, que estava a par da situação desde o primeiro momento em que havíamos posto os pés ali.

Ela apenas aceitou, recebeu a gentileza sem parecer contrariada com o que pudesse soar como uma inconfidência da corretora, que nos apresentara o apartamento e agendara a visita naquela manhã quente de uma terça-feira de junho.

Andamos pela casa. Gostei bastante do que ela havia feito lá, eu lhe disse. Então explicou que uma das filhas agora estava estudando fora (no Canadá) e que, tão logo tinha levantado voo, como todas as crianças um dia fazem, o filho do meio se apossara do quarto, deixando um cômodo inteiro para a mais nova, de 9 anos, a mesma idade da milha filha mais velha.

A cada quarto, apontava um móvel que iria ficar, que ela não faria questão de levar seja por que razão fosse, se para economizar na mudança ou porque não o desejava mais. Esse fica, esse também fica, ia indicando, até mesmo deslocando objetos com mãos hábeis para mostrar como era prático caso tivéssemos interesse.

Seu mobiliário, repleto de memórias, das marcas deixadas por seu casamento recém-desfeito, seria nosso se de fato ficássemos com o apartamento. Uma vida concreta que fora montada aos poucos nesses 15 anos e cujas peças ela tentava reposicionar, como nos jogos em que os pares estão embaralhados e cada participante tem de memorizar o lugar dos iguais.

Mesmo nessas circunstâncias, estava no controle, não perderia a chance de destacar as qualidades da casa. Sugeriu alterações, contou que outro casal que a visitara no dia anterior tinha mencionado que poderia eliminar uma passagem e abrir outra no corredor, de modo a ganhar uma suíte, explorando a versatilidade do imóvel, que era talvez a sua própria.

Fechou a porta assim que demos boa tarde e nos despedimos.

Depois fiquei pensando se tudo não havia sido insuportável para ela, da nossa presença até a do bebê, que não via a hora de que fôssemos embora e ela pudesse estar novamente sozinha ali, quem sabe revendo passo a passo o caminho percorrido, do começo ao fim, e agora finalmente contemplasse pela janela esse instante em que as coisas saem dos trilhos e a vida desborda em outra rota.

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?