Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
Fico pensando se os movimentos pendulares do dólar, tão em moda atualmente, se conectam de alguma maneira com o jogo do tigrinho, esse exercício sobre o qual apenas deambulo, sem dele saber qualquer coisa, salvo que se trata da monetização do fracasso e da normalização do vício.
É sintomático que o Brasil de hoje tenha se convertido numa "casa grande" de apostas, com as moedas oscilando ao sabor de projeções de ganho amparadas em ataques especulativos de toda ordem, com famílias atoladas em dívidas recorrendo ao maquinário digital.
Dos jogadores ao presidente, do mercado ao bicheiro, o ativo nacional - o "soft power" - é desde sempre, todos sabemos, essa inclinação atávica ao ethos da jogatina, no qual cada cidadão se converte num adicto cuja rotina não se passa sem que os dados tenham sido atirados à mesa.
Da bolsa às bets, do presidente do BC ao Paquetá, todos estão apostando em algum grau, ou seja, ofertando um capital ou antevendo conquistas de naturezas diversas, seja de votos ou de mandato, seja de cargo de ministro ou da majoração da fortuna amealhada sob esse angu caroçudo.
Por sangue e criação, tenho intimidade com essa gramática da dependência. O avô, por exemplo, era um devotado jogador de baralho, percorria os sertões do Ceará fiando-se num carteado manuseado com habilidade e boa visão periférica. Como trunfo de malandro caso as vacas subitamente fossem para o brejo, carregava sempre um jogo de cartas marcadas com microincisões cuja legibilidade apenas ele tinha capacidade de traduzir.
Eram ranhuras, hoje imagino, pequenas intervenções - uma forma de arte de escrita? - conduzidas por mãos que poderiam ter sido as de um cirurgião ou escultor, mas eram as de um apostador em tempo integral. Sentava-se à mesa das 8 da manhã às onze da noite, cumprindo expediente levado à risca por esse catecismo deficiente, uma criatura de alma falhada e caminho desvirtuado, tipo ordinariamente dantesco.
De casa mesmo, então, herdei involuntariamente a predileção por essa linguagem cifrada cujos grafismos se leem nas bordas dos naipes da carta, à margem do espaço escritural. Sintaxe derreada, elaborada em segredo, confeccionada com múltiplas intenções, danificada por seus propósitos às vezes incômodos.
Mas o avô era homem de seu tempo, fruto da cultura do desafio, da honra e do confronto, do rateio e do empenho, da sorte e do azar. Tudo ou nada, rico ou pobre, as suas escolhas sempre se guiando por essas contingências estribadas em dualismos. Pacífico e violento, morreu numa briga de facas numa esquina pela qual evito passar por medo de seguir-lhe o rastro, vendo-me no seu rosto de siderado.
Dele guardo, todavia, essa ciência do cassino das ruas, que é onde talvez se sentisse à vontade para blefar, regatear e dobrar os lances, exatamente como esses enxames de usuários fazem agora em plataformas de apostas, multiplicando seus dividendos em operações algorítmicas cheias de uma opacidade que não havia então.
É, suponho, a prova de que o mundo do avô e o de hoje se tocam por vias de comunicação enviesada, por baixo dos gestos de prestidigitação e engano que compõem o repertório desse balé de mascaramento de perdas cotidianas e de derrocada financeira que se processa nas brechas, representadas à perfeição pelos caça-níqueis online, numa virtualização do patológico e na patologização do virtual.
Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página
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