Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
Há por todos os quadrantes da metrópole esse lugar-comum segundo o qual Fortaleza é uma cidade rebelde, mantra repetido por oposição e situação, artistas e capitalistas, ricos e pobres, bem-nascidos e alpinistas sociais cuja especialidade é escalar diligentemente o topo das hierarquias públicas a golpes de puxa-saquismo.
Nada de novo sob o sol, apenas o fato de que levem realmente a sério o clichê, do qual se lança mão nas mais variadas circunstâncias e a pretexto das razões mais disparatadas, como uma noção da qual se servem à vontade com fins pessoais diversos.
Do candidato descendente de políticos ao artista plástico/arquiteto cujas contas não fecham sem os contratos com o Estado, do empresário ao gestor engajado na bajulação como esporte olímpico, não se passa uma semana sem que o alegado espírito transgressor da urbe morena seja invocado como elemento de um vazio discursivo cuja elasticidade admite qualquer palavreado a fim de agradar.
Foi assim que, não faz tanto tempo, enquanto acompanhava uma dessas concorridas vernissages de nossa noite, ouvi de uma convidada - detentora de uma parcela generosa do PIB alencarino - um genuíno e tocante elogio à "ancestralidade", que para ela constituía um traço familiar que a ajudava a explicar a sua pequena fortuna amealhada no curso da transmissão de capital hereditário, ou seja, de pais para os filhos e dos filhos para os netos.
Até aí, tudo bem, nada propriamente surpreendente nesse uso mais alargado, doidivanas e despolitizado de categorias antropológicas/sociológicas em ocasiões mais informais, espécie de "stand up comedy" muito comum entre ricos e riquíssimos para divertir os comensais, cujas expressões mais desconfiadas nunca conseguem esconder plenamente uma verdade: no fundo, no fundo, todo mundo se conhece - o que equivale a dizer que todos sabem exatamente como cada um enriqueceu.
Mas voltando à vaca fria: eis, então, a estupenda resiliência de nossa terrinha como sinônimo de rebeldia e indocilidade, como se se pudesse atribuir a qualquer ajuntamento urbano traços como os de conservadorismo ou insubordinação, beleza e feiura. Naturalmente há cidades mais ou menos dotadas de predicados positivos ou negativos. É o caso do Rio, estuário de estupor visual e manifestação de uma corporeidade gozosa à flor da pele.
Me pergunto, todavia, o que Fortaleza fez para merecer o epítome de indisciplina de suas gentes votantes. A mera eleição de políticos (de mulheres, especificamente) à esquerda? Ora, essa mesma natureza insurreta, a contrastar com seu traçado disciplinadamente axadrezado, já se mostrou simpaticíssima, ontem e hoje, a nomes de outros matizes ideológicos, como os 15 anos de "juracismo" não autorizam mentir.
Estaria presente tamanho desassombro fortalezense no modo passivo-agressivo com que o gentio conduz seus negócios - os do afeto e os pecuniários, que se confundem -, guiando-se pelo familismo e pelo patrimonialismo, fazendo passar por sucesso pessoal as meras operações que se originam nas múltiplas transações que se dão por meio das redes de influência, num tipo de "toma-lá-dá-cá" do bem?
Ou o caráter desabusado da loura desposada do sol residiria no pendor à privatização do público e na pacífica e democrática convivência entre os endinheirados e aquela fatia da população mais empobrecida?
Honestamente, admito que não tenho resposta, mas não deixo de me divertir com essa vulgarização no emprego da desobediência citadina de uma fortaleza historicamente servil aos sussurros mais sedutores que emanam das mesmas fontes, dos mesmos bolsos e dos mesmos sobrenomes.
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