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Que delícia o verão
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

Que delícia o verão

Para mim, o espanto é que o salto da ponte velha, algo que sempre associei aos viventes da Draga, tenha se convertido nessa Disneylândia dos Chico Moedas de Fortaleza
Tipo Crônica
FORTALEZA, CEARÁ, 04-11-2023: Ponte Metálica, do Poço da Draga. Banhistas ainda conseguem ter acesso ao local e realizam saltos das estruturas.  (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)




 (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS FORTALEZA, CEARÁ, 04-11-2023: Ponte Metálica, do Poço da Draga. Banhistas ainda conseguem ter acesso ao local e realizam saltos das estruturas. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)

Um amigo convida insistentemente ao salto da ponte velha, assim chamada com carinho, como se morador da região do Poço da Draga desde sabe-se lá quanto tempo. Estranho a familiaridade, mas não o aceno ao programa dominical recém-convertido em roteiro obrigatório da "jeunesse" alencarina do melhor quadrante de nossa cidade, gente com quem tenho mais em comum do que gostaria.

Lembro, contudo, quando o movimento era o inverso, dando-se a ver uma curiosidade: de um lado, no que se chamava então de "Crush", que já foi a Vila dos Amores, os tipos mais descolados se refestelavam ao sol da tardinha, batucando sons imaginários e gorgolejando cerveja. Havia ainda poucas caixas de JBL, é verdade, donde a sensação de conforto ontológico - eram corpos feitos não para qualquer praia, mas para aquela da moda.

Mal se firmou como point, como o cearense ainda gosta de falar, o local foi gradualmente tomado de assalto num sentido figurado, ou seja, como resultado de um afluxo de frequentadores que tinham deixado para trás os saltos da ponte para se divertir em comunhão com os forasteiros de outros CEPs à procura de um banho de mar sem contato com os nativos.

Descubro agora, não sem surpresa, que esse movimento se completou, com as pontes velha e nova - espécies de marcos de frequentação da orla - dividindo imaginariamente esse território, como sempre houve por bem ocorrer no Ceará, onde há cercados mesmo quando tudo leva a crer que não os há.

É assim nos shoppings, por exemplo, quando, nesse footing de sábado à noitinha, os usuários torcem o nariz e viram o rosto para fingir não ver o pega-pega entre seguranças empoleirados em seus patinetes e levas de famílias - mulheres, crianças de braço, pequenas, toda uma enfiada de deslocados, figuras marcadas nas vestes e nos códigos para não estarem ali e perseguidas a uma distância segura, num tipo de "Mad Max" social ao vivo.

Assim é também noutros espaços, onde vigora a métrica da cisão de classe ainda que, por natural e conveniente, ache-se que o regime de visibilidade seja o mais transversal possível, já que entre nós a ideia de uma democracia racial nunca perdeu totalmente seu poder encantatório.

Mas nunca é, nem nos cinemas da vez nem nos museus mais procurados. Há sempre um pedágio simbólico a se pagar, na entrada ou na saída - às vezes em ambas.

Para mim, o espanto é que o salto da ponte velha, algo que sempre associei aos viventes da Draga, área muito rica agora evocada como potência por quem queira se fazer passar por gente de casa sem ser -, tenha se convertido nessa Disneylândia dos Chico Moedas de Fortaleza, como disse outro amigo, este mais à vontade para tratar dessas e de outras coisas sem o medo de se implicar.

Ele mesmo se reconhece como um desses "desqueridos" que, do dia para a noite, resolveram invadir aquela praia, atualizando o mito de Iracema, nada muito diferente do que se costuma ver nas terras do Siará de ontem e de hoje, seja na Beira Mar ou no Icapuí dos sonhos de cercania avançada.

Foto do Henrique Araújo

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