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O Brasil foi roubado
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

O Brasil foi roubado

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Tipo Crônica

O brasileiro, quando travestido com sua persona de torcedor ou de torcedora, torna-se refém de uma fixação: ter sido ou estar sendo garfado, roubado, arrasado, afanado, como se seus “divertidamente” carregassem aonde fossem uma placa na qual se lê, em letras garrafais e com estridência visual: “Attenzione, pickpocket”.

Herança ibérica ou somente estratégia para potencializar o investimento emocional na disputa? Não se conhece resposta fácil.

Seja nas barras assimétricas ou no tiro, no solo ou na natação, no vôlei ou no skate, nas ondas ou no futebol, na grama ou na areia, há a convicção, solidamente fincada na psique nacional, de que a autoridade arbitral em cena se volta contra nós, numa espécie de conspiração global na qual se irmanam as potências do mundo contra o talento tropical em luta ante os deuses dos maus augúrios.

Se uma bola parece ter displicentemente caído dentro, mas foi considerada fora, eis então mais que a dúvida embaraçosa ou a suspeita espicaçante do erro. Está ali, gritante, o indício do que é evidente aos olhos de todos: o Brasil foi roubado. Se uma ginasta tropeça ou um judoca escorrega, o que se revela não é a imperícia ou a má sorte do competidor na busca por vitória, mas a arquitetura explícita de uma trama internacionalista cujo propósito é impedir o berço do samba de finalmente se tornar o que está fadado a ser desde o seu grandioso nascimento como nação: uma força olímpica sem par.

É como se, entre o país e seu futuro presumidamente chamejante (dourado, prateado ou bronzeado, não importa), houvesse essa paradoxal presença “oculta” sombreando cada juiz, um personagem que representa desde já o poder formalmente constituído – donde se pode concluir que o problema do gentio é essa desconfiança atávica em face da instituição e sua função normativa.

Logo, a revolta verde-amarela costuma se expressar como desdobramento incontido do desagrado que esse latino-americano (sem dinheiro no banco) alimenta em relação aos impasses cotidianos de sua pátria de origem, diante dos quais está sempre pronto a denunciar maquinações mal disfarçadas a fim de prejudicá-lo, fazendo tabula rasa de toda regra e ordenamento sociais, tomando como pessoal o que é formal e vice-versa.

Daí a figura do julgador como alvo da indisposição e da contrariedade, do desafeto e do ranço, do aborrecimento e do desgosto desbragado. O nativo até torce, mas jamais sem acalentar, no mais fundo de seu íntimo, a certeza de que, em Paris ou em Tóquio, no Rio ou em Pequim, será terrível e inapelavelmente injustiçado – eu diria kafkianamente condenado.

Me pergunto, contudo, o que essa síndrome de perseguição cabocla traduz de nossa alma atormentada; se se trata mesmo de uma extrapolação do “jeitinho”, cantado em prosa e verso, ou de alguma neurose de guerra. Mas qual, se não tomamos parte em conflitos desde muito (salvo as chacinas urbanas), se o Brasil é cordato por natureza e as suas gentes miscigenadas representam a quintessência das liberdades civis e da carnavalização da libertinagem?

Alto lá, penso cá comigo, já enfastiado e convencido ao final de que esse traço do caráter da nossa audiência macunaímica, engajada nos eventos esportivos de grande escala, só pode escamotear algum sintoma apenas entrevisto de uma qualquer degenerescência, uma espécie de frieira espiritual da qual nunca nos livramos, por mais pomada que tenhamos usado na infância.

Foto do Henrique Araújo

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