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Normalizando o desastre
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

Normalizando o desastre

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Tipo Notícia

O que significa essa progressiva normalização da normalização, ou seja, o uso pouco criterioso do que se entende por normal, de modo que o "anormal" ou desarrazoado se banalize, passando de excentricidade a trivialidade, de insalubre a digerível?

Da extrema-direita aos fármacos que turbinam rendimentos e performances em ambientes concorrenciais, da conspirata política a outros tipos de extravagâncias, tudo se passa agora como se a normalização do que é excessivo se convertesse prontamente em dado ordinário do real; logo, aceitável.

A via medicamentosa, por exemplo, levada ao cotidiano empresarial como procedimento de aperfeiçoamento do desempenho, com a explosão de receitas (legais ou não) de substâncias cujo propósito é amplificar o foco e redobrar a capacidade laboral num mundo de competição visceral, mesmo que ministradas a pessoas sem diagnóstico e ao custo da saúde e da atenção, implicando quase que automaticamente o usuário num futuro certo como adicto funcional.

Proponho, então, o contrário, a desnormalização ou o estranhamento do familiar - ou, por outro caminho, a familiarização do estranho, que não se confunde com o acolhimento acrítico do prejuízo (psicológico e físico) tornado regra de um bom-mocismo a la Joel Pinheiro, a tradução em pessoa dessa algaravia das redes que resulta no ímpeto infantilizado de se fazer audível deblaterando platitudes.

Pensem no bolsonarismo e em tudo que representa. Ou em Maduro e o extremismo camarada admitido por seus amigos. Ou mesmo noutras formas de autocracia à esquerda ou à direita e no convite que se lê frequentemente, e também muito recentemente, para que se aceite a natureza adoentada desses fenômenos como coisa nossa, atributos de um corpo social saudável, "ma non tropo".

É assim mesmo, dizem. É o brasileiro e a sua cultura miscigenada, seus modos de vida não racistas por excelência e por aí vai, como se nossa configuração genotípica produzisse naturalmente a matéria-prima que o mundo inteiro persegue.

A normalização da violência, no entanto, escancara esses cálculos e essa sintaxe que aproxima o inaceitável, de maneira a fazer passar aos poucos o abominável (a polícia paulista com licença para matar), que vai se despindo de seu caráter horroroso - Trump e as denúncias de que é alvo, mas a despeito das quais concorre novamente com chances de vitória à cadeira de presidente.

O desastre se normalizou. A própria normalização se tornou norma: a convivência democrática com a antidemocracia, a tolerância com os intolerantes, a submissão aos insubmissos cuja raison d'être é exaurir e pilhar, enquanto conduzem o mundo à bancarrota.

Talvez, contudo, essa normalização na política stricto sensu não seja apenas um caso isolado. Talvez a normalização - e sua reiterada presença no debate público - seja o epifenômeno apresentado numa face tal que esconde uma verdade que lhe é anterior, que a precede como causa. Mas qual verdade?

A de que normalizamos a ideia em si de esgotamento (do planeta, das relações, da utopia) como horizonte do qual deveríamos nos afastar como coletividade, abrindo mão de formular respostas possíveis à encalacrada atual, aceitando de bom grado que as coisas não apenas estejam nesse pé, mas que tendem a piorar bastante, sem que consigamos fazer nada para impedi-las de caminhar rumo ao abismo.

Foto do Henrique Araújo

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