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O futuro é analógico
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

O futuro é analógico

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Tipo Notícia

Tal ideia se deu como num estalido, enquanto passava horas pendurado à espera de falar com a atendente. Ouvia sem paciência a voz maquínica indicar opções numeradas de um ao nove, ao fim das quais acrescentava numa voz pastosa e doce que poderia digitar zero se desejasse escutá-la novamente, num looping sem fim.

Eu não desejava, claro, de modo que segui em silêncio, interrompido apenas quando uma emissão sonora me pareceu familiar: era morfologicamente humana. Ali estava uma semelhante, alguém do outro lado da linha genuinamente disposta a entender meus problemas.

O futuro é analógico, pensei. Logo, cada um que tenha condições evitará ao máximo no dia a dia passar por tudo isso, uma via crucis de rotinização excruciante mediada exclusivamente por aplicativos e robôs cuja função prioritária deveria ser a de nos fazer economizar tempo.

Mas o que se passa é exatamente o contrário, gasta-se muito tempo vagando perdido kafkianamente nesses labirintos de precarização digital, tateando às cegas entre veredas fantasmáticas sem que se dê com viv'alma.

Suponho que seja mais um desses cenários contra os quais tentam nos convencer de que não adianta lutar, que o futuro é digital e toda essa onda de transformação é irrecorrível. Donde o gesto de revolta frequentemente traduzido como muxoxo de velharia em permanente defasagem física e existencial com o mundo contemporâneo.

Antes fosse, e me quedaria satisfeito de que orgânica e mentalmente estou em desacordo com a vida moderna e seus cacoetes "tiktokizados", mas não se trata disso. Pelo contrário, o que se vê é mais uma dessas profecias autorrealizáveis, exatamente como a do carro como vetor de desenvolvimento das cidades décadas atrás.

Ali por volta de 1960 ou um pouco antes disso, ainda havia alternativa a esse emaranhado de ruas e circuitos de estradas operando como sistema vascular de metrópoles cujos núcleos de habitação estavam social e financeiramente hierarquizados para atender demandas de produção - de um lado os centros bem-servidos e de outro os subúrbios.

Essa lógica, por razões óbvias, consagrava o transporte automotor privado como métrica não apenas de expansão, mas como fluxo de organização da vida em sociedade. Nada se fazia sem que se tivesse o carro como signo seja de deslocamento, seja de estratégias de distinção.

Ora, essa "carrocracia" ainda impera. Veja-se Fortaleza, por exemplo, onde a propriedade do veículo da moda se converte rapidamente em índice de ascensão na linguagem do poder. Pelo carro, sabe-se quem está na crista do sucesso e quem não está, quem é novo-rico e quem não é.

Algo semelhante talvez comece a acontecer a partir de agora, mas tendo o digital como horizonte: os detentores de maior capital arrogarão para si o privilégio da interação face a face, enquanto os vulneráveis/remediados terão de se contentar com essa comunicação gaguejante reduzida a uma interface humano/IA na qual toda nuance e toda possibilidade de interlocução estão de pronto ausentes.

Assim como o carro naquele pós-guerra em convulsão, o alvorecer da onipresença da máquina em substituição às gentes soa como futuro precificado. Nele não cabe contestação que não se leia unicamente como enfado suspiroso de quem perdeu o bonde da história.

Foto do Henrique Araújo

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