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Teologia da entrega
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

Teologia da entrega

Tipo Crônica

Admito que tenho certa implicância com o verbo "entrega" quando empregado nesse sentido mais recente e novidadeiro, ou seja, para significar algo que um gestor, colaborador ou trabalhador simplesmente produz ou conclui ou prepara, seja uma obra, seja uma tarefa qualquer. A isso se chama "entrega", corporativamente falando.

De modo que é bem avaliado quem faz as "entregas", sendo naturalmente visto como aquele cuja competência o torna merecedor de crédito porque se encarrega de levar a cabo uma missão que lhe é atribuída, a fim de que contabilize pontos com seu líder - não mais patrão nem empresário nem gerente, mas o simulacro que mascara e eufemiza a realidade das relações de posse, produção e, por tabela, também de poder.

Fico pensando sobre o que "entregar" quer dizer de fato. O que se entrega quando o termo é mobilizado, se utiliza o vocábulo porque ele está destituído de todo traço político, reduzindo o trabalho a um maquinismo linguístico que se movimenta ao sabor do ritmo "gamificado" da vida atual, feita de reações "pavlovianas" a
estímulos arbitrários.

Sua operação se instaura, então, no cumprimento das etapas mecânicas requeridas para a execução, de maneira que as "entregas" estão prontas no exato momento em que seu condutor maneja os seus protocolos com rigor, adestrado para a consecução de um propósito previamente sabido.

Mas "entrega" - ou "entregas", no plural - vai além: supõe uma vacuidade, um laivo de leviandade e descompromisso, um ato para cuja concretização não se conhece resíduo nem sujeira nem corpo. É, por assim dizer, um gesto limpo, plano, não situado, livre de arestas, despossuído por encantamento.

A "entrega" do prefeito, do presidente, do deputado, do jovem investidor, da ministra, da artista, do produtor, da pesquisadora e da professora, da bolsista e da assessora, do candidato e do talento promissor que logo aprende a jogar conforme as regras do seu campo interessadamente desinteressado.

Todas estão submetidas ao mesmo regime totalizante da "entrega", cuja ênfase no objeto acabado e apresentado a um público implica uma mercadorização da comunicação, que passa a existir orientada por uma
lógica capital.

A "entrega", qualquer que seja, dirige-se sempre a uma clientela, ainda que se trate de pessoas/coletividades/comunidades. Vê-las como beneficiárias/destinatárias desse produto é sintomático do grau acentuado de colonização da linguagem, que se deixa reformular nos termos de uma
fé na produtividade.

Não por acaso, essa jabuticaba expressiva desloca o foco para a "coisa pronta", eliminando o processo e dando os fins como plenamente justificados, numa espécie de "fascismo semântico", para o qual não interessa como cada gesto se efetivou, mas apenas que exista e esteja miraculosamente entregue.

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