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Presente do passado
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

Presente do passado

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Tipo Crônica

Fiquei pensando no tênis desgastado da Balenciaga vendido por dez mil reais. Roto, sujo, aparência de ter sido usado nos últimos três carnavais do Icaraí. Mas, a despeito disso, ainda caro, inalcançável ao bolso do vulgo pagador de impostos,
principalmente se brasileiro.

A ruína comercializada, o passado plasmado em artefato consumido por grife de luxo e posto em circulação restrita. O velho não é apenas velho, é exclusivo. Como se se pagasse também pela memória que o objeto carregaria, ao menos em intenção.

O tênis da marca espanhola tem experiência sem ter tido de fato, entra no circuito com estatuto de peça de museu, um desses signos que remetem a civilizações antigas, encontrados em escavações num país qualquer de um continente distante.

É como uma mensagem distópica. À falta de futuro, fabricamos o pretérito. Daí o nome da estética: "destroyed". De tudo, séries e filmes atuais disponíveis nos serviços de streaming, do fim do mundo ao apocalipse zumbi, é o produto de massa cuja mensagem é mais abertamente catastrófica. Não porque simule essa falsa sujeira e um desgaste ausente, postiço e calculado. Mas porque já estamos vendendo o que não temos: o tempo.

O tempo que nos falta, essa pressa sem projeto, uma aceitação de que não há porvir, acomodação ao futuro sem futuro. Tudo isso está desde agora precificado e etiquetado, sublimado até mesmo na moda, em peças que fazem questão de escancarar o princípio da destruição, estilizá-lo, empacotando o caos, elemento com o qual o Brasil vem
convivendo de perto.

Da Amazônia ao garimpo, da cultura às instituições, o ideal "destroyed" está por toda parte, regendo as ações oficiais, os discursos, gestos e leis, as relações e escaramuças. Gasolina, diesel, óleo de cozinha, carne, inflação. Tudo destruído ou quase.

Há no Brasil e no tênis da Balenciaga um nexo não tão sutil, que é esse caráter de consumo para poucos de uma mercadoria convertida em detrito. Mesmo deteriorada, custa muito tê-la, assim como custa abastecer o carro e consumir o que quer que seja, ainda que com padrão baixo de qualidade.

Uma ideia restrita é compartilhada nesse campo de transações, o mercado global e a política. Afinal, é tudo negócio, seja um tênis (fake) velho ou um pedaço de terra no meio da floresta. Importa é aterrar qualquer possibilidade de um presente que não se esgote no hoje, que sobreviva mais do que 24 horas.

O produto da grife é melancolicamente jocoso. Um artigo pós-moderno por excelência, porque kitsch e sem pudor ao explicitar a condição danificada do estado geral das coisas, a corrosão dos objetos e das relações, mas sobretudo do planeta.

E, ao mesmo tempo, não apontar pra lugar nenhum, não oferecer qualquer caminho que não seja o da mera destruição, mesmo que de brincadeira e a um preço pelo qual um punhado de gente consegue pagar.

 

Foto do Henrique Araújo

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