Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
O caju é minha "madeleine", aquele artefato cuja proximidade táctil aciona alavancas passadiças, e então o pretérito se presentifica. Digo caju, mas se trata mais do cheiro do que propriamente de seu perfil anguloso e seu ar circunspecto, uma fruta em tudo respeitável e algo ensimesmada, satisfeita consigo mesma e deleitosa.
É tempo de caju. Estão por toda parte, nos sinais e nos canteiros, nas árvores e nos anúncios, nas feiras e nos supermercados, onde são vendidos em bandejas, já lavados e sem traço da terra escura e granulosa onde mãos de menino os apanhavam e daí levavam à boca, numa consumição sem travos nem ranço ou receio de enfermidade.
Era-se bicho por essa época, mais ainda quando havia cajus pendendo dos galhos mais altos ou mais baixos, quando a vó pedia que voltasse das brincadeiras da tarde com a sacola cheia para fazer suco, não desperdiçasse sequer aqueles machucados, amassados e tristes porque deixados para trás, nas trilhas de vereda ou à sombra dos pés de pau.
Um dia, ao chegar do trabalho, estavam no balcão da cozinha de casa compondo uma natureza vivíssima, estridente de tão concreta, talvez para compensar a falta. Mergulhados numa bacia com água, boiando ou submersos, toda a sala e os quartos e a varanda recendiam a caju fresco, o odor fibroso e levemente adocicado se espiralando em nuvem, como uma fábrica de rememória.
Foi como tê-la visto ali, em pé ou sentada na rede chupando caju sem dentes, porque os perdera muito cedo, o corpo todo envolvido no ato de sucção da fome daquela carne nodosa. De lado uma bacia e um pano, o vestido já respingado de todo tempero que houvesse usado na lida do almoço ou da janta.
Eram os cajus que tinha trazido mais cedo do sítio novo, horas e horas empoleirado no olho da árvore, revezando-me entre comer e guardar, comer e guardar. Gostava dos avermelhados, os amarelos eram mais para azedo, os laranjas nem se fale, puro gesto de constrição experimentá-los sem nada para acompanhar. Às vezes serviam apenas para apanhar os pequenos em armadilhas que preparávamos, de repente a criança se punha a mastigar a pele sem dar por si, cuspindo-o em mil caretas.
Eis as modas de antigamente, quando do caju eu sabia porque se impregnava no dia a dia do bairro, por todo o canto havia um cajueiro e nele seus pingentes multicores à espera do novembro certo para frutificar. Plantas de tronco rugoso, robustas e expansionistas, não se dobravam facilmente, nem sob peso de uma récua, sua copa acavalada espraiando-se em desordem.
Assumiam sempre os contornos mais inesperados: havia as labirínticas, as empertigadas, as econômicas ou frugais, as horizontais e as verticais, nunca se repetindo em sua aventura.
Deitado no chão, não se podia adivinhar os caminhos que o crescimento do cajueiro percorreria, daí o risco de vê-lo na calçada ou na rua e mesmo no quintal, pelo espaço e pela força de suas raízes.
Tudo isso mal se vê num caju agora no prato, diante do qual se vagueia no descampado da lembrança em procura desse rio mais antigo que transborda com as chuvas da estação.
Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página
e clique no sino para receber notificações.
Esse conteúdo é de acesso exclusivo aos assinantes do OP+
Filmes, documentários, clube de descontos, reportagens, colunistas, jornal e muito mais
Conteúdo exclusivo para assinantes do OPOVO+. Já é assinante?
Entrar.
Estamos disponibilizando gratuitamente um conteúdo de acesso exclusivo de assinantes. Para mais colunas, vídeos e reportagens especiais como essas assine OPOVO +.