Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
Encontrei fotos da família que considerava perdidas, estavam sob a guarda de alguém. Cenas do dia a dia, uma sala, um sofá, um aniversário. Entre elas, minha avó e meu avô paternos, cujo rosto não conhecia. Era um estranho até então, seus olhos rasgados, o cabelo cortado rente e a testa alongada, o pescoço largo e os braços esticados ao lado da esposa, ainda muito jovens.
A avó era bonita, os mesmos traços que vi se repetirem noutras mulheres de casa, uma tia, uma sobrinha, a irmã, todas participantes de um jogo secreto. Vê-la foi como remontar um quadro de peças faltantes, contornos cuja frequência se devia a essa espécie de molde não datado e jamais encontrado.
Estranho que tenha aparecido apenas agora depois de tanto tempo, sem que eu a procurasse, tampouco sem que tenha pedido nem suposto que ainda restassem essas imagens, dadas como extraviadas já havia tanto.
Eis que surgem de repente, os troncos antigos subitamente à mostra, como diria a outra vó, revelando esse desejo mal disfarçado de ancorar a existência em qualquer pedra ou galho que pareça mais sólido do que esse buraco da falta de referências.
Do conjunto modesto de fotos, transmitidas por celular e vistas num domingo, o jovem casal chamou a atenção por conter em gérmen todas as aspirações do mundo. É o que imagino por um instante, logo encerrando qualquer esboço de fantasia ou projeção por saber aonde tudo levaria.
Tento encaixá-los no pouco que sei de ambos, a avó e o avô, mas já não cabem no retrato que havia feito dos dois por conta própria, preenchendo as lacunas como se faz com as histórias de criança, aquelas que minha filha pedia que lhe repetisse antes de dormir, sempre as mesmas aparições atrás das portas e os vultos soprando as cortinas no meio da tarde.
Como todo retorno fantasmático, os avós extravasam pelas bordas do recorte do obturador. Na pose para o retratista, saem do negativo e ganham uma vida inesperada, presentes apesar da distância, a exemplo dessas raízes que crescem sublevando-se sob camadas de cimento nas calçadas, de onde irrompem para desfazer o trabalho de horas e dias.
O capital da herança se conserva de muitas maneiras, uma das quais é a transmissão da história, que se narra por meio de uma memorabilia, do vestuário aos livros, das estantes aos diplomas, dos causos às gavetas repletas de um mundo de objetos cuja leitura reconta o mito da família, sempre atualizado a cada nova geração.
Os mecanismos de preservação da memória, entretanto, são quase sempre instrumentos que derivam do privilégio de classe, dos álbuns aos fotogramas mantidos salvos da ação do tempo. Essa investidura no suporte contra a ação corrosiva dos anos consome energia e recursos.
Daí que tenha me alegrado com as fotos avulsas recém-saídas de alguma brecha no espaço-tempo, como materiais fantásticos que escapam dos buracos negros para vagarem indefinidamente, mas acabam sendo dragados pela força gravitacional de um planeta qualquer.
Antes delas, a imagem que se fixara na cabeça da criança que fui era a da avó já bastante doente, emagrecida e terminal, a pele como uma coberta muito rala que não a protegia nem do frio nem da despedida.
Na foto, porém, posso refazer essa cena, retendo-a como gostaria que fosse: os lábios desenhados num meio sorriso que talvez adivinhasse o futuro.
Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página
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