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A cidade é um ovo
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

A cidade é um ovo

Tipo Crônica

A cidade é um ovo, escuto com frequência. Ao que os mais exagerados acrescentam, em tom ainda mais incisivo: um ovo de codorna, o dedo em riste a advertir o interlocutor ingênuo.

Um ovo pelo que tem de geograficamente diminuta, claro, e isso sempre me pega, para usar essa gíria de fabricação mais recente (já sem muito uso, tanto ela quanto a palavra gíria em si). Porque no fundo se trata de uma metrópole, a quarta maior do país, uma cidade com três milhões de pessoas e mais de uma centena de bairros, casas e ruas.

Espalhada como um ovo na frigideira, é verdade. Quente como ovo cozido, abafada como ovo na cuscuzeira, mas não exatamente um ovo, no seu sentido figurado, se é que consigo me explicar.

Mas há quem insista: a cidade é um ovo. O que isso quer dizer, afinal de contas?

É coisa para se investigar, até para encompridar aquela conversa mais chã, na mesa de bar ou na fila do pão, no cinema ou na praça, quando duas pessoas desconhecidas descobrem amigos comuns e intuem, como numa epifania "clariceana", que a cidade é um ovo.

Ou seja, o fato de que dois nativos ocasionalmente encontrem entre si elos significativos do mesmo network, por sua vez resultado de uma só família de laços, é evento tão sugestivo que acaba por levar a essa conclusão miraculosa: um ovo, sim.

Mas a cidade é um ovo porque todos de alguma maneira se farejam, porque nada se faz às escondidas ou porque o pior dos malfeitos termina revelado n'algum "exposed"?

Porque alguém sempre é próximo de alguém que estudou com o primo da namorada do melhor amigo no terceiro ano do Geo ou do Batista ou do Santo Inácio?

Ou a cidade é um ovo porque os circuitos culturais e de lazer, os espaços de frequentação e de sociabilidade de uma faixa populacional (a classe "média" média) costumam se manter rigorosamente os mesmos, inclusive quando essa parcela dos fortalezenses decide apostar em novidades?

Afinal, esse é outro postulado evidente: Fortaleza é novidadeira (mais que transgressora), mas nela as novidades são sempre as mesmas para o mesmo grupo social, isto é, a força do hábito é o motor atrativo de relações interpessoais autorrestritivas, que se tornam ainda mais exclusivas à medida que o tempo passa.

É quando se ouve aquela famosa pergunta que precede qualquer programa de fim de semana: lá é muito misturado ou é só gente como a gente?

A "mistura", celebrada apenas como norte moral de um mundo entre iguais, é malquista no dia a dia, evitada sempre que possível. De modo que até na rebeldia Fortaleza é uma cidade conservadora.

Mas disso não se conclua que é um ovo, porque não é. Ou é apenas se os limites de quem a vive se estreitam pelo quadrilátero de um conjunto de bairros e tudo fora deles pareça com aquele descampado do mundo para onde Simba jamais deve ir, em hipótese alguma, porque lá mora o perigo com "P" maiúsculo.

As chances de furar a casca do ovo, sempre menores quanto mais acanhados são os traçados da experiência prática do indivíduo, correspondem ao mapa afetivo de cada um.

Nesse mundo ovalar, rico interage com rico, pobre com pobre, remediado se vê às voltas com remediados e por aí vai, com poucos lugares nos quais há interseccionalidade e abertura para o encontro fora da predisposição social que determina tudo, dos matrimônios às amizades.

A sensação de que Fortaleza é uma cidade-ovo então talvez não passe disso, ou seja, do reconhecimento tácito de que os cercadinhos VIPs e os bistrôs de bacanas não convivem com outras modalidades de interação, seja de que tipo for.

 

Foto do Henrique Araújo

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